Rumo a um Direito Penal Comunitário?

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
ProfessionFuncionário do Estado de São Paulo
Pages55-76

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Lançamos este capítulo com os seguintes questionamentos: as instituições comunitárias dispõem de uma competência penal plena, isto é, com o poder de criar normas proibindo certos comportamentos, prevendo sanções penais e uma jurisdição penal no seio da União Européia? As instituições comunitárias podem adotar normas penais, criando normas de incriminação e regras de processo penal aplicáveis aos Estados membros? A Corte de Justiça da Comunidade Européia possui competência jurisdicional em matéria penal? Estas questões são controversas. Uma resposta global seria negativa, mas esta deve ser compreendida com certa nuança.

Não faz muito tempo, havia um consenso da não existência de um Direito Penal Comunitário, visão compartilhada pelas instituições européias e pelos Estados nacionais. Porém, esta visão modificou-se ao longo dos últimos anos e hoje, torna-se uma realidade com o Tratado Constitucional da União Européia1, sendo este instrumento normativo a base jurídica necessária para atribuir competência às instituições européias no campo penal.

Antes do Tratado Constitucional, não havia competência penal plena da Comunidade Européia, sob duplo ponto de vista:
1. Não havia previsão de nenhuma norma penal nos Tratados constituintes da Comunidade Européia; e

  1. Não havia competência penal no Direito Comunitário derivado, delegado pelos Estados nacionais às instâncias comunitárias.

    Porém, eis a nuança que deve ser apresentada quanto a não competência penal plena da Comunidade Européia: as normas comunitárias codeterminam o Direito Penal interno, através de obrigações que pesam sobre as legislações internas, ou seja, o Direito Penal nacional é condicionado pelo Direito Comunitário.

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    Vamos analisar neste capítulo os obstáculos à construção de um Direito Penal no âmbito da União Européia. Eles são basicamente três:
    1. Violação da soberania nacional (argumento político);
    2. O respeito do princípio vinculado ao Estado de Direito (argumento institucional); e

  2. O princípio da especialidade das competências comunitárias (argumento jurídico).

    Antes de analisar tais obstáculos, devemos precisar o que se entende por Direito Penal Comunitário. Três hipóteses se configuram:
    1. Uma norma de um dos Tratados que constituem a Comunidade Européia é ela própria a norma de incriminação;

  3. Uma norma de um dos Tratados que constituem a Comunidade Européia é a base jurídica da norma de incriminação, oriunda do Direito Comunitário derivado (Regulamentos e Diretivas); e

  4. A norma de incriminação vem diretamente do Direito Comunitário derivado (Regulamentos e Diretivas)

    Na primeira hipótese, no interior dos Tratados (considerados como as normas primárias do Direito Comunitário), encontraríamos uma norma de incriminação. Por exemplo, o artigo 194 do Tratado EURATOM, sobre a criação do segredo atômico. Em tese esta disposição introduziria uma incriminação de natureza comunitária, prevendo a incriminação da violação do segredo atômico.

    Na segunda hipótese, uma disposição contida nos Tratados autorizaria o Direito Comunitário derivado a introduzir uma disposição de natureza penal. Assim, tal disposição penal teria como base jurídica e fundamento de validade uma disposição expressa em um dos Tratados.

    Na terceira e última hipótese, uma norma do Direito Comunitário derivado introduziria por si só uma norma penal, aplicável aos Estados membros, sem necessidade de uma base jurídica oriunda dos Tratados. Certas normas de Direito Comunitário derivado, sobretudo Regulamentos, poderiam introduzir uma disposição penal aplicável diretamente aos Estados membros.

    Passemos a analisar os obstáculos existentes à construção de um Direito Penal no âmbito da União Européia.

A) Violação da soberania nacional
1. A posição tradicional – domínio reservado aos Estados

Esta posição foi mantida tanto pelas instâncias comunitárias quanto pelas instâncias nacionais: não existe Direito Penal Comunitário, pois o Direito Penal

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é de competência (exclusiva) estatal. Os Estados membros consideram o Direito Penal como um atributo de soberania, não devendo dele abrir mão em prol das instâncias comunitárias.

Por exemplo, a Corte de Luxemburgo teve a oportunidade de expressar sua posição: CJCE, 1988, DREXL – “A Comunidade Européia é uma Comunidade de Direito sem um Direito Criminal”. Deste modo, não seria possível a extensão da responsabilidade penal de um indivíduo por intermédio dos textos comunitários. Uma incriminação seria oriunda somente de uma legislação penal nacional.

Apesar da existência ainda marcante no seio da União Européia desta visão fortemente vinculada à soberania nacional, que questiona a própria evolução da Europa na direção de uma União Política, podemos afirmar que existem contra-argumentos jurídicos que permitem a superação deste obstáculo de natureza política.

2. Os argumentos favoráveis à competência penal comunitária

É fato que o conceito clássico de soberania – como supremo poder estatal expresso nos preceitos legais, ou o direito que pertence ao Estado de agir livremente em seu interior - está sendo reavaliado e mitigado. No âmbito da União Européia, houve a cessão de soberania em muitos domínios, por exemplo, no campo financeiro com a adoção da moeda única euro. Porque apenas o Direito Penal ficaria de fora deste movimento?

O principal argumento que possibilita a superação deste obstáculo de natureza política é a existência nos Tratados Comunitários da denominada cláusula de salvaguarda da ordem pública. Por exemplo, os artigos 30, 39, 46 e 58 do Tratado da Comunidade Européia. Eles permitem que os Estados se liberem das obrigações decorrentes da Comunidade Européia, quando certos interesses nacionais fundamentais estão em questão.

Por exemplo, vejamos o artigo 30 do Tratado da Comunidade Européia, relativo à livre circulação de mercadorias, que deve ser apreciado em conjunto com os prévios artigos 28 e 29:

Art. 28. “As restrições quantitativas à importação assim como todas as medidas de efeito equivalente são proibidas entre os Estados membros”. Art. 29. “As restrições quantitativas à exportação assim como todas as medidas de efeito equivalente são proibidas entre os Estados membros”.

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Art. 30. “As disposições dos artigos 28 e 29 não fazem obstáculo às interdições ou restrições de importação, de exportação ou de trânsito, justificadas por razões de moralidade pública, de ordem pública, de segurança pública, de proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais ou da preservação da vegetação, da proteção de tesouros nacionais de valor artístico, histórico ou arqueológico ou de proteção da propriedade industrial e comercial. Todavia, estas interdições ou restrições não devem constituir nem um modo de discriminação arbitrária nem uma restrição disfarçada no comércio entre os Estados membros”. Destarte, os Estados não se submetem às prescrições do Direito Comunitário se a salvaguarda de ordem pública é considerada fundamental. Isto quer dizer que se leva em consideração os aspectos essenciais da soberania nacional. Os Tratados Comunitários respeitam os interesses essenciais dos Estados.

Uma tal disposição poderia ser interpretada como uma “válvula de escape” bastante confortável aos Estados para não atenderem as disposições comunitárias todas as vezes que seus interesses estivessem em questão. Mas tal interpretação colocaria em risco a própria base da Comunidade Européia. Deste modo, deve-se destacar que a Corte de Justiça da Comunidade Européia realiza um controle bastante rígido quando da utilização desta cláusula de salvaguarda por parte dos Estados.

Uma disposição análoga ao artigo 30 do Tratado da Comunidade Européia existe para a liberdade de circulação de pessoas (art. 39), para a liberdade de estabelecimento de serviços – livre iniciativa (art. 46) e liberdade de movimentação de capitais (art. 58). Todos estes artigos possuem uma cláusula de salvaguarda de ordem pública.

Um exemplo concreto da utilização desta cláusula de salvaguarda: quando da constatação do problema da “vaca louca”, em respeito ao princípio de liberdade de circulação de mercadorias, em princípio os Estados nada poderiam fazer para impedir sua importação, muito menos pensar em criminalizar tal conduta. Entretanto, os Estados puderam ficar isentos da obrigação de permitir a livre circulação desta mercadoria graças ao artigo 30 do Tratado da Comunidade Européia, particularmente com base na proteção da saúde pública.

Outro artigo interessante a ser apreciado: art. 296 do Tratado da Comunidade Européia: “Nenhum Estado membro é obrigado a fornecer informações

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cuja divulgação seja considerada contrária aos interesses essenciais de sua segurança”. Mais uma vez, demonstra-se que a Comunidade Européia respeita certos limites vinculados à soberania nacional, como a sensível questão de informações.

Questão importante é aquela relativa à imigração. O Tratado de Amsterdã2 (1997) fracionou o terceiro pilar definido pelo Tratado de Maastricht (1993). Este Tratado reunia questões de criminalidade e de imigração no mesmo pilar, sendo tal tratamento bastante criticado, pois implicitamente denota que “imigração é caso de polícia”, raciocínio absurdo, tendo em vista que a grande maioria dos imigrantes vão para a Europa em busca...

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