Rumo a um Processo Penal Comunitário?

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
ProfessionFuncionário do Estado de São Paulo
Pages77-206

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A) O projeto de um processo penal comum em matéria de proteção dos interesses financeiros – Corpus Iuris

Vamos1 neste capítulo apresentar os aspectos principais do denominado Corpus Iuris, que estabelece disposições penais e processuais penais para a proteção financeira da União Européia2. Este projeto doutrinário foi elaborado por um grupo de especialistas dos diversos Estados-membros, sob direção da jurista francesa Mireille Delmas-Marty, a partir de uma demanda do Parlamento Europeu. Este texto, de natureza acadêmica, tem o mérito de ser – no contexto de uma reflexão sobre a competência penal da União Européia – um ponto de partida de vanguarda para uma evolução em direção à harmonização/unificação do Direito Penal e Processual Penal Europeu, atraindo a atenção dos juristas e políticos europeus sobre a matéria. Ao mesmo tempo, este Corpus Iuris representa o atingir do ponto mais elevado

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de um complexo normativo, pois ele cristaliza, dentro de uma visão micro-sistêmica, após um enorme esforço comparativo, um certo número de soluções extraídas do espaço penal europeu nos últimos anos, bem como oriundas dos princípios e garantias comuns às ordens jurídicas dos Estados-membros. Destarte, a remissão ao Corpus Iuris – mais como modelo de reflexão teórica do que como instrumento normativo operacional – nos serve de referência fundamental sobre a construção de um Direito Penal Europeu.

• Histórico de criação do Corpus Iuris

O título preciso deste texto doutrinário é: “Corpus Iuris estabelecendo disposições penais para a proteção dos interesses financeiros da União Européia”.

No início da construção da Comunidade Européia, esta não era dotada de competência penal. Após a Segunda Guerra Mundial, a necessidade de rearmamento de certos países se apresenta. Um Tratado Internacional é assinado em 1952, instituindo a Comunidade Européia de Defesa – CED, dotada de uma competência penal. Todavia, em 25 de julho de 1952, a Assembléia Nacional francesa se recusa a deliberar e debater a respeito da ratificação deste instrumento normativo supranacional.

Após alguns anos, houve uma segunda tentativa de instalação de um micro-sistema penal, através do Projeto Eurodelito de 1976, que levaria a uma modificação dos Tratados constitutivos de Roma e de Paris. A idéia central era de adicionar um Protocolo contendo um certo número de incriminações penais de proteção a bens jurídicos comunitários, devendo ser aplicadas pelos Estados membros. Este Projeto não prosperou devido ao dissenso entre os Estados membros da Comunidade Européia.

Durante o final da década de 80 e início da década de 90, a Comunidade Européia aplica recursos financeiros para o estabelecimento de um debate concreto sobre a PIF – Proteção aos Interesses Financeiros, com a organização de Seminários, financiamento de Associações de Pesquisadores Europeus e Subvenção a publicações científicas. Uma equipe de pesquisadores foi estabelecida em 1989. Esta teve a tarefa de elaborar um repertório dos instrumentos normativos existentes nos Estados membros, quanto à proteção aos interesses financeiros, ou seja, todas as infrações e sanções administrativas e penais em vigor nos 12 Estados membros (em 1989) a este respeito.

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Em paralelo, outros estudos foram elaborados, por exemplo, em matéria de transação, prática adotada por certas Administrações, como o Fisco francês, que com esta “gestão alternativa do comportamento infracional” consegue recolher o tributo sonegado e assim evitar o processo penal, considerado longo e ineficaz.

A Convenção de Proteção aos Interesses Financeiros (terceiro pilar), seus Protocolos, bem como o Regulamento em matéria de Proteção aos Interesses Financeiros (primeiro pilar) resultaram todos destas pesquisas comparatistas. Porém, o Parlamento Europeu e a Comissão, insatisfeitos com a não efetividade destas normas, atribuíram um mandato a um grupo de especialistas para avançar a respeito destes mecanismos, tendo em vista a preparação de uma unificação de certos instrumentos de direito penal e de direito processual penal.

Destarte, um grupo de juristas com tal mandato foi estabelecido no ano de 1995, reunindo Professores de Direito Penal e de Processo Penal de oito países (França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Espanha, Grécia e Itália), grupo este dirigido pela penalista francesa Mireille Delmas-Marty. Os grandes ausentes deste grupo foram Portugal e Irlanda do Norte, sendo notório uma sobrerepresentação de países de tradição romano-germânica, com apenas um país de tradição anglo-saxã (Professor John Spencer, Universidade de Cambridge, Inglaterra).

O trabalho deste grupo de doutrinadores levou à elaboração de um primeiro texto em 1997, que afirma a vontade de ultrapassar o contexto normativo tradicional das três vias existentes – assimilação, cooperação e harmonização – no domínio de proteção aos interesses financeiros da Comunidade Européia. Esta Comissão considera que estas vias não são satisfatórias, pois:

– a assimilação atingiu, nos anos 80, um objetivo importante de instituição de padrões mínimos de incriminação, em matéria de proteção aos interesses financeiros, entretanto, ela não permite uma verdadeira integração, nem uma harmonização, pois os Estados permanecem senhores de suas legislações;

– a cooperação não garante uma aproximação dos sistemas nacionais, pois constitui unicamente um meio de relacionamento superficial entre os sistemas, e não um verdadeiro instrumento de integração normativa; e

– a harmonização constitui um instrumento de aproximação, mas não de unificação. Ela é, por um lado, difícil de se alcançar, por outro, implica o estabelecimento de normas similares, mas não idênticas, gerando contradições sistêmicas e bastante complexidade ao todo.

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O grupo considera que tal procedimento tradicional terá, no máximo, um papel simbólico contra a grave criminalidade transnacional européia. Deste modo, este grupo propõe um novo paradigma jurídico, baseado na unificação normativa, ou seja, aplicação de um conjunto de normas homogêneas a todos os Estados membros da Comunidade Européia. A noção de unificação é a essência do Corpus Iuris, e o que não for coberto por tal mecanismo, as demais vias citadas podem ser adotadas.

A primeira versão do Corpus Iuris proposta em 1997, a partir da qual formularemos nossas análises, é composta de 35 artigos:

– 17 artigos sobre direito penal material, geral e especial: 1 a 17;
– 17 artigos sobre direito penal processual: 18 a 34; e
– um artigo (artigo 35) que estabelece o princípio de subsidiariedade do

Corpus Iuris – quando tal conjunto normativo não regula determinada hipótese de incidência, deve ser utilizado o direito nacional. Estudos foram realizados após 1997, cujo objetivo essencial era o de verificar o impacto do Corpus Iuris sobre os 15 Estados membros da Comunidade Européia. Uma segunda Comissão foi formada, composta de oito redatores, bem como de 4 relatores e de 15 pontos de contato, um de cada Estado membro. O fim destes pontos de contato era o de estabelecer, para cada artigo do Corpus Iuris, uma análise em relação a cada ordem nacional e examinar os obstáculos potenciais de compatibilidade do Corpus Iuris com os direitos nacionais, principalmente com os textos e princípios constitucionais. A partir daí, uma segunda (e última) versão do Corpus Iuris foi elaborada no ano 2000.

O Corpus Iuris é uma proposta doutrinária que procura responder à contradição de manter aberta as fronteiras aos infratores e fechada aos órgãos encarregados da repressão, com o risco concreto de transformar a Europa em um paraíso criminal. Ele não é um Código Penal Europeu, nem um Código de Processo Penal Europeu, totalmente unificado e diretamente aplicável, em todos os domínios, pelas jurisdições européias criadas a este efeito. O que se propõe é um projeto mais humilde, mais simples, com um conjunto de regras penais, limitado à proteção penal dos interesses financeiros da União Européia, e destinado a assegurar, em um espaço judiciário europeu unificado, uma repressão mais justa, mais simples e mais eficaz.

Estas regras obedecem a princípios diretores (1) já inscritos na tradição jurídica européia, como consagrada nos princípios fundamentais do direito comunitário, de acordo com a Corte de Justiça da Comunidade Européia, e na Convenção Européia de Direitos Humanos.

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O Corpus Iuris não possui a pretensão de tudo regular, nos mais precisos detalhes. Ele se limita à edição de trinta e cinco regras, agrupadas em torno de sete princípios que indicam sua orientação geral. Estes princípios norteiam as regras penais (2) e processuais (3 e 4).

Devemos destacar que a análise dos artigos do Corpus Iuris será permeada por julgados da Corte Européia de Direitos Humanos, já que boa parte das regras previstas no Corpus Iuris visa uma total harmonia com as garantias previstas na Convenção Européia de Direitos Humanos.

1. O Corpus Iuris e os princípios gerais do processo

Estes princípios, em número de sete, dividem-se em princípios tradicionais e em novos princípios.

Os princípios tradicionais, vinculados ao Direito Penal substantivo, são: o princípio da...

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