O Direito quase-penal e o procedimento aplicável

AuthorJosé Antonio Farah Lopes de Lima
ProfessionFuncionário do Estado de São Paulo
Pages207-218

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Dissemos no início desta obra que a matéria penal, elemento essencial do Direito Penal Europeu, é composta do Direito Penal stricto sensu e do Direito quase-penal, ou Direito Administrativo Penal. Com a criação jurisprudencial da noção de matéria penal, tanto as sanções penais como as administrativas punitivas se vinculam a certas garantias que protegem o jurisdicionado dos Estados europeus. Se hoje o Direito Comunitário está no limite de poder instaurar sanções de natureza penal, é certo que o mesmo tem competência para estabelecer sanções de natureza administrativa.

A) O sistema de sanções administrativas punitivas em matéria de proteção aos interesses financeiros comunitários

As primeiras sanções previstas pelo ordenamento comunitário foram elaboradas em matéria de concorrência. Esta previsão se encontra nos artigos 81, 82 e 83 do Tratado da Comunidade Européia. O artigo 81 se refere às condutas ilícitas de formação de cartel e o artigo 82 se refere ao abuso de posição dominante, infrações à livre concorrência no seio do mercado comum europeu. E quais são as sanções aplicáveis no caso de violação destas regras? Os Regulamentos e Diretivas podem introduzir medidas coercitivas e multas para serem respeitadas as interdições previstas nos artigos 81 e 82 acima citados (artigo 83, a). Desta maneira, existe um fundamento jurídico para a aplicação de sanções administrativas punitivas em matéria de concorrência.

Quanto às multas, podemos nos questionar se se trata de multas administrativas ou de natureza penal. De qualquer modo, uma ou outra se situa dentro do que denominamos matéria penal. Mas sabemos que na ausência de competência penal comunitária, estas multas são de natureza administrativa.

O Regulamento n. 17, de 1962 foi o primeiro dispositivo a prever medidas de controle e sanções em matéria de concorrência. Tal Regulamento foi atualizado e hoje seu conteúdo se encontra no Regulamento n.1, de 2003.

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Este Regulamento detalha os poderes sancionatórios previstos no artigo 83 do Tratado da Comunidade Européia. Os artigos 23 e 24 prescrevem, respectivamente, multas e medidas coercitivas.

O artigo 23 determina a aplicação pela Comissão de multas às empresas, podendo atingir 1% do seu faturamento, quando elas não comunicam as informações necessárias à Comissão, ou quando estas informações transmitidas se configuram como incorretas. Trata-se de uma simples irregularidade cometida pela empresa. Porém, se uma infração é cometida (conforme as previsões dos artigos 81 e 82 do Tratado da Comunidade Européia), a multa pode atingir 10% do faturamento. Este é o limite quanto à aplicação de multas em matéria concorrencial.

O artigo 24 estabelece medidas coercitivas, que podem chegar a 5% do faturamento diário, calculado sobre a base contábil do exercício precedente.

O mais importante em relação a estes artigos é o fato destes dispositivos serem os precursores em matéria de sanção administrativa punitiva, ou seja, base de aplicação (em combinação com os artigos 81, 82 e 83 do Tratado da Comunidade Européia) do Direito quase-penal Comunitário.

No final dos anos 80, houve a expansão das sanções administrativas punitivas para os Regulamentos Setoriais em matéria de Proteção dos Interesses Financeiros (PIF). Estes Regulamentos foram elaborados em 1990, relativos às subvenções aos produtores de carne bovina, bem como ao regime de auxílio temporário em matéria agrícola. Estes Regulamentos possibilitavam à Comissão Européia a aplicação de sanções correspondentes às irregularidades verificadas. Estas sanções se diferenciam das previstas anteriormente em matéria de concorrência, pois:

– são previstas e reguladas pelo Regulamento Comunitário, mas se destinam a serem aplicadas pelos diversos sistemas jurídicos nacionais;

– elas se diferenciam pelo seu conteúdo: existem sanções não-patrimoniais, como medidas de interdição, com a perda total da subvenção aprovada no caso de declaração inexata ou a exclusão de benefícios previstos em certo regime beneficiário, bem como sanções patrimoniais inovadoras, como a diminuição do benefício acordado em função da gravidade das declarações inexatas, obrigação de devolver a quantia indevidamente obtida, acrescida de uma certa porcentagem de natureza punitiva.

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Quanto à natureza jurídica destas sanções, o Serviço Jurídico da Comissão e o Relatório à Comissão sobre a harmonização dos controles em matéria de Política Agrícola Comum propõem de classificar tais sanções como de natureza administrativa. Porém, trata-se de sanções punitivas, e não somente de caráter restitutivo, pois contêm um caráter aflitivo perante o autor da violação da regra comunitária.

A Alemanha entrou com um recurso contra a Comissão perante a Corte de Justiça de Luxemburgo, pois considerava tais sanções de natureza penal, disfarçadas em sanções administrativas. É o célebre julgado C 240-1990, de 27 de outubro de 1992, RFA contra Comissão. A Alemanha considerava estes Regulamentos irregulares sob dois aspectos principais: 1) falta de base jurídica para fundar tais sanções (diferentemente da matéria concorrencial, analisada anteriormente); 2) a Comissão não teria o poder de estabelecer este Regulamento, mesmo sob título de delegação do Conselho, que nesta matéria seria o único competente para tal mister.

A Corte de Justiça da Comunidade Européia, a respeito da natureza das sanções questionadas pela Alemanha, afirma que se trata de sanções administrativas, e que a Comunidade é legítima para estabelecer tais sanções, mesmo fora das matérias previstas nos Tratados. Esta decisão fortaleceu o poder de sanção (administrativa) da Comunidade Européia, possibilitando sua extensão nos anos seguintes.

Quanto à sua aplicação, o fato destas sanções administrativas serem confiadas aos sistemas nacionais não exclui a existência de um núcleo de princípios fundamentais próprio ao sistema jurídico comunitário, garantindo-se assim uma maior uniformidade destas sanções. Levando-se em consideração que a Corte de Justiça da Comunidade Européia insere os direitos humanos nos princípios gerais de direito do sistema jurídico comunitário, tais limites são impostos tanto às instâncias comunitárias quanto aos sistemas...

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