A regulamentação da criação intelectual na internet: uma análise comparada entre as medidas francesas e os projetos brasileiros

AuthorMarília de Aguiar Monteiro
Pages75-101
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET:
UMA ANÁLISE COMPARADA ENTRE AS MEDIDAS FRANCESAS E OS
PROJETOS BRASILEIROS
MARÍLIA DE AGUIAR MONTEIRO1
Resumo:
O presente aborda a regulamentação da criação intelectual na internet, efetuan-
do uma análise comparada entre as medidas francesas e os projetos brasileiros
na área. O objetivo do trabalho é discutir a melhor abordagem para enfrentar
os desa os da regulação das condutas dos usuários na internet. Para tanto, serão
analisadas, de forma comparada, a proposta francesa para a regulação da criação
intelectual na internet e sua repercussão na União Europeia, bem como os di-
versos projetos desenvolvidos no Brasil que in uenciaram a criação na internet.
Palavras -chave:
Hadopi; Diretiva 2001/29/CE; Sociedade da informação; Promusicae; Sabam;
PL nº 84/99; Lei Azeredo; Marco Civil da Internet; Lei de Direitos Autorais.
Introdução
O desenvolvimento tecnológico multiplicou e diversi cou as maneiras de criar,
produzir e explorar bens culturais. As atuais leis, em especial as leis de direitos
autorais, enfrentam esses desa os, devendo adaptar -se de forma a promover
uma resposta adequada à nova realidade econômica e as novas formas de con-
sumir e acessar esses bens.
A internet contém diversas páginas com informações armazenadas em com-
putadores espalhados pelo mundo inteiro. São conteúdos de diversos tipos: tex-
tos, fotos, desenhos, vídeos, música, que podem ser acessados facilmente por um
computador ou mesmo um celular. E todos esses conteúdos podem ser “baixa-
1 Aluna da graduação da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV Direito
Rio) e estagiária no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS/FGV Direito Rio). Trabalho orientado pelo
professor Sérgio Vieira Branco Júnior, líder de projetos do CTS da FGV Direito Rio.
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dos” e armazenados. A internet permite a apresentação de todas as formas de
mídia, o que signi ca uma democratização não só do acesso à informação, mas
também da produção dessa informação. Qualquer cidadão comum produz e re-
cebe informação e entretenimento em qualquer lugar do mundo, a todo instante.
É nesse contexto que se discute a melhor abordagem para enfrentar os de-
sa os da regulação das condutas dos usuários na internet. Há necessidade de se
fazer um contrapeso entre os diferentes interesses em jogo, de um lado os usuá-
rios e o direito à internet livre e aberta no mesmo modelo em que foi concebida
em confronto com os titulares de direitos autorais e conexos e as empresas da
indústria do entretenimento que sustentam ser os direitos autorais a melhor
forma de incentivar a criação.
Para além de empresas e consumidores esse debate envolve também o Po-
der Público, que possui deveres de garantir a liberdade e neutralidade da inter-
net e o amplo acesso a informação, cultura e conhecimento, sem prejuízo da
remuneração dos autores, inovação e incentivo a criação.
A primeira parte deste texto apresenta a proposta da França para regulação
da criação intelectual na internet. A escolha da legislação francesa deriva do
fato de que esta tem recebido grande atenção por parte da imprensa uma vez
que a solução adotada pela mesma possui um tom bastante repressivo na ten-
tativa de se estimular a criação intelectual. A legislação comentada optou por
um sistema dissuasivo em três etapas com aumento da punibilidade conforme
houver reincidência na infração à propriedade intelectual, sendo a última etapa
o cancelamento do acesso à internet.
Tamanha foi a repercussão da legislação proposta na França que o Conselho
Europeu aprovou recentemente uma resolução que reconheceu o acesso à inter-
net como um direito fundamental, na medida em que a rede auxilia o exercício
pleno da cidadania,2 em clara oposição à alternativa apresentada pela França.
A segunda parte do texto apresenta de forma resumida os projetos que
vêm sendo desenvolvidos no Brasil e in uenciam a criação na internet. No que
diz respeito à lei brasileira sobre direitos autorais, vale lembrar que a Consumers
International a classi cou como uma das piores leis do mundo em termos de
acesso a bens culturais, adequação das exceções e limitações, preservação do
patrimônio cultural, acessibilidade, adaptação aos novos modelos digitais e uti-
lização privada dos bens culturais.3
2 Mais informações sobre a resolução, ver o site Cultura Livre:
pt/2009/06/08/conselho -da -europa -reconhece -que -acesso -a -Internet -e -direito -fundamental/>.
3 Ver Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec): -acao/em -foco/
brasil -esta -entre -os -paises -com -as -piores -leis -de -direitos -autorais>.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 77
Como forma de contornar essa situação, uma reforma da lei de direitos
autorais está sendo debatida no País desde 2007, capitaneada pelo Ministério
da Cultura e sujeita, como todo processo político, às  utuações dos relaciona-
mentos e dos cargos derivados dessa mesma natureza.
Uma segunda iniciativa em destaque no Brasil é o chamado Marco Civil
da Internet, processo de elaboração colaborativo que contou com grande parte
da sociedade brasileira para de nir temas como direitos e deveres básicos dos
usuários na internet e responsabilidade dos provedores de acesso por conteúdo
disponibilizado na rede. Essa iniciativa, embora não aborde diretamente a ques-
tão dos direitos autorais, enfrenta diversas questões pertinentes para o tema da
criação intelectual e da regulamentação das condutas na internet.
1. Aspectos da lei francesa — Lei Criação e Internet — e a Haute Autorité pour la
Diffusion des Oeuvres et la Protection des droits sur Internet (Hadopi)
A Lei “Criação e Internet”, mais conhecida como Lei Hadopi, é a Lei nº 2009-
-6694, de 12 de junho de 2009, da XIIIª legislatura da V República da França.
O seu objetivo é bene ciar a difusão de obras na rede e proteger a criação na
internet.
A Lei trouxe alterações a diversas leis francesas, dentre elas modi cações
ao Código de Propriedade Intelectual, ao Código de Correio e Comunicações
Eletrônicas, ao Código da Educação e ao Código da Indústria Cinematográ ca.
Ela criou também a Haute Autorité pour La Di usion des Oeuvres et laProtection
des droits sur Internet5 (Hadopi), autoridade pública independente que tem
por missão institucional6 o incentivo do uso responsável da internet por seus
usuários: (i) promovendo o desenvolvimento de estudos sobre direitos autorais
na rede e observando a utilização lícita e ilícita de obras na internet; (ii) prote-
gendo as obras das violações aos direitos autorais que lhes são vinculados e (iii)
regulando o uso de medidas técnicas de proteção.
4 Detalhes da lei e das alterações impostas por ela podem ser acessados no site:
a chTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000020735432&fastPos=1&fastReqId=1885736834&categorieL
ien=id&oldAction=rechTexte>. Acesso em 14 de setembro de 2011.
5 Alta Autoridade para Difusão de Obras e Proteção de direitos na internet, em tradução literal.
6 A Hadopi está situada em Paris e é composta por um Colegiado de Diretores, a Comissão de Proteção
de Direitos (CPD), responsável pelo mecanismo da resposta graduada e cinco Diretorias Operacionais.
A missão da instituição e sua composição foram extraídas do seu site o cial:
la -haute -autorite/la -haute -autorite -presentation -et -missions> acessado em 14 de setembro de 2011 />.
Interessante ver também a seleção dos artigos relativos a Hadopi no Código de Propriedade Intelectual,
disponível em: -juridiques/code -de -la -propriete -intellectuelle>
Acessado em 05 de outubro de 2011.
78 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
A Lei Hadopi entrou em vigência em 2009, no entanto é fruto de um esfor-
ço a nível comunitário de harmonização do tema que remonta ao ano de 2001
com a edição da Diretiva 2001/29, de iniciativa do Parlamento e do Conselho
Europeus. Internamente, o percurso legislativo começou com a transposição da
Diretiva 2001/29 na Lei DADVSI (Droit d’Auteur et Droits Voisins dans la Société
d’Information),7 em 2006, e os Acordos do Elysée de 2007. O debate interno foi
marcado por tensões que dividiram o percurso da Lei em períodos chamados de
“Hadopi 1” e “Hadopi 2”. Se por um lado novos desa os já levam o debate para
a criação de uma chamada “Hadopi 3”, é importante passar em revista os deta-
lhes do processo para melhor entender como foi criada e como opera a estrutura
decorrente da legislação. Os itens a seguir tratarão desse processo.
A.1) A Diretiva 2001/29/CE e sua transposição para o ordenamento jurídico francês
Para melhor compreender os fundamentos da Lei Hadopi é necessário conhecer
o processo de transposição da Diretiva 2001/29/CE8 do Parlamento Europeu
e do Conselho de 22 de maio de 2001. Essa Diretiva trata da harmonização
de certos aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade de
informação.
A harmonização das leis dos Estados Membros (EM) relacionadas a direi-
tos autorais e conexos considerou de forma essencial a e ciência do mercado
comum da região em vista da necessidade de se adaptar as atuais regulações de
direitos autorais à realidade econômica, sobretudo no que tange a exploração
dos bens culturais. A preocupação dos órgãos da União Europeia era uniformi-
zar a regulação da criação intelectual na internet, que já se iniciava de forma
isolada nos países do bloco, de forma a otimizar a livre circulação de bens e
serviços (pilares fundadores da comunidade europeia) baseados em propriedade
intelectual.9 Com esse objetivo, as considerações da Diretiva indicam que,
7 Em tradução literal, signi ca Direito de Autor e Direitos Conexos na Sociedade da Informação.
8 Texto da Diretiva 2001/29/CE disponível em português no site:
directiva_2001 -29 -CE.pdf>. Acessado em 14 de setembro de 2011.
9 Tal preocupação pode ser percebida nos considerandos da própria diretiva, em especial o item 6 — “(6)
Sem uma harmonização a nível comunitário, as actividades legislativa e regulamentar a nível nacional,
já iniciadas, aliás, num certo número de Estados -membros para dar resposta aos desa os tecnológi-
cos, podem provocar diferenças signi cativas em termos da protecção assegurada e, consequentemente,
traduzir -se em restrições à livre circulação dos serviços e produtos que incorporam propriedade intelec-
tual ou que nela se baseiam, conduzindo a uma nova compartimentação do mercado interno e a uma
situação de incoerência legislativa e regulamentar. O impacto de tais diferenças e incertezas legislativas
tornar -se -á mais signi cativo com o desenvolvimento da sociedade da informação, que provocou já um
aumento considerável da exploração transfronteiras da propriedade intelectual. Este desenvolvimento
pode e deve prosseguir. A existência de diferenças e incertezas importantes a nível jurídico em matéria de
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 79
desde início da década de 1990, o Conselho Europeu já apontava a necessidade
de se criar um marco regulatório a nível comunitário de forma a fomentar o
desenvolvimento e a inovação da sociedade da informação. Os direitos autorais
e conexos foram identi cados pelo Conselho Europeu como atores centrais no
contexto do desenvolvimento, uma vez que protegem e estimulam o desenvol-
vimento do mercado de novos produtos e serviços.
A Diretiva incentivou um alto nível de proteção que garantisse a manu-
tenção e desenvolvimento da criatividade através de formas de remuneração e
prêmios aos criadores e executores de obras. Embora entendesse que as exceções
e limitações aos direitos autorais seriam ferramentas de promoção do interes-
se público, em especial o ensino e a educação, ela fez menção às Convenções
Internacionais da OMPI sobre direitos autorais e ao combate internacional da
pirataria para justi car suas medidas. A persecução de um apoio adequado à
distribuição e acesso a esses bens não deveria ser levada adiante em detrimento
da proteção estrita de direitos ou em benefício da pirataria e contrafação. Dessa
forma, a diretiva enumerou de forma exaustiva as exceções e limitações aos
direitos como de reprodução e distribuição. Destaca -se o considerando nº 31:
“Deve ser salvaguardado um justo equilíbrio de direitos e interesses
entre as diferentes categorias de titulares de direitos, bem como entre
as diferentes categorias de titulares de direitos e utilizadores de material
protegido. As excepções ou limitações existentes aos direitos estabeleci-
das a nível dos Estados -membros devem ser reapreciadas à luz do novo
ambiente electrónico. As diferenças existentes em termos de excepções e
limitações a certos actos sujeitos a restrição têm efeitos negativos directos
no funcionamento do mercado interno do direito de autor e dos direitos
conexos. Tais diferenças podem vir a acentuar -se tendo em conta o de-
senvolvimento da exploração das obras através das fronteiras e das activi-
dades transfronteiras. No sentido de assegurar o bom funcionamento do
mercado interno, tais excepções e limitações devem ser de nidas de uma
forma mais harmonizada. O grau desta harmonização deve depender do
seu impacto no bom funcionamento do mercado interno.”
Passado o processo de elaboração da diretiva nos órgãos da União Euro-
peia, surgiu a obrigação de sua transposição na ordem jurídica interna.10 Cada
protecção pode prejudicar a realização de economias de escala relativamente a novos produtos e serviços
que incluam direito de autor e direitos conexos”.
10 Desde a publicação no Jornal O cial da União Europeia, as diretivas integram a ordem jurídica interna
de todos os Estados -membros (EM) ou somente daqueles a qual a diretiva foi direcionada. No entanto,
as diretivas não produzem todos os seus efeitos a partir de sua entrada em vigor no ordenamento jurídico
pátrio. Para produzir efeitos plenos, a diretiva precisa ser transposta para o ordenamento interno. Por
80 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
diretiva  xa um prazo para transposição, variando de acordo com a amplitude
e a complexidade que pode ser enfrentado na atividade de transposição. Nas
palavras de Nuno Gonçalves:
“É sabido que o trabalho de directivas comunitárias para a ordem
jurídica nacional constitui um desa o delicado. (...) Há ainda que con-
siderar, ao nível hermenêutico, a necessidade de a interpretação do texto
balizar e diferenciar a leitura do que nele é ‘normativamente explícito’ da
leitura ‘implícita’, conquanto ambas admissíveis, se respeitarem o hori-
zonte da interpretação autêntica.”11
A Diretiva 2001/29/CE foi transposta em 2006 para o direito francês por
meio da Lei Droit d’Auteur et Droits Voisins Dans La Société d’Information (Lei
DADVSI).12 Essa lei já previa uma autoridade reguladora de medidas técnicas (a
ARMT, que foi substituída pela Hadopi) e um mecanismo de resposta graduada
chamado de “teste em três etapas” que averiguaria uma exploração normal da obra
e transformava de direito de delito em contrafação a prática de “disponibilização ao
público de obra sem autorização do titular”. As duas últimas medidas foram consi-
deradas não compatíveis com a Constituição de acordo com decisão do Conselho
Constitucional francês de agosto do mesmo ano. Quanto ao teste em três etapas,
o Conselho o considerou “pouco preciso” e de difícil percepção a um particular da
reunião de todas as etapas que permitem uma utilização legal da obra.13
A ministra da Cultura e Comunicação francesa, em 2007, Christine Al-
banel, con ou a Dennis Olivennes, executivo da empresa Fnac, a missão de
propor uma nova modalidade de resposta graduada compatível com a decisão
do Conselho Constitucional. Em 23 de novembro de 2007, o relatório foi apre-
transposição, não se entende o mesmo que internalização para os tratados internacionais. Transposição é
toda e qualquer atuação do EM no cumprimento das medidas necessárias à implementação da diretiva.
Por exigir esse ato do EM diz -se que as diretivas são regidas pelo princípio da autonomia institucional.
Os EM são obrigados a adequar suas leis internas aos objetivos da diretiva, seja anulando as disposições
contrárias à diretiva, seja editando normas necessárias a sua implementação. As diretivas conferem aos
EM uma liberdade de escolha dos meios e medidas concretas que lhes melhor convêm para atingir os
resultados impostos pela diretiva essa liberdade se re ete no poder de escolha que os EM têm na natureza
do ato de transposição da diretiva, por isso, ele pode escolher de qual poder estatal esse ato emanará.
11 GONÇALVES, Nuno. A transposição para a ordem jurídica interna portuguesa da directiva sobre o direito
de autor na sociedade da informação. Direito da Sociedade da Informação — volume VI. Coimbra: Coim-
bra Editora, 2006, v. VI, p. 252.
12 Íntegra da lei disponível em: chTexte.do?cidTexte=JORFTE
XT000000266350>.
13 Destacam -se os pontos 33 e 54 da decisão do Conselho. Disponível em
-constitutionnel.fr/conseil -constitutionnel/francais/les -decisions/acces -par -date/decisions -depuis-
-1959/2006/2006 -540 -dc/decision -n -2006 -540 -dc -du -27 -juillet -2006.1011.html>. Acessado em 05
de outubro de 2011.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 81
sentado com a criação de uma autoridade administrativa para gerir um sistema
de noti cações ao qual se seguiriam punições não penais destinadas a prevenir
e, em casos de reincidência, sancionar os downloads ilegais.
Essas propostas foram reunidas no “Acordo Olivennes” posteriormente nome-
ado “Acordo do Élysée”14 assinado por cerca de 46 empresas e organizações repre-
sentativas da indústria da cultura e do entretenimento e da internet. As empresas
fornecedoras de acesso à internet se comprometem, pois, a  ltrar e até mesmo cortar
o acesso à internet de seus clientes. Esse foi o texto base para a Lei “Hadopi 1”.
A Comissão Nacional de Informática e Liberdades15 (conhecida pela sigla
CNIL), autoridade administrativa independente francesa, que tem por missão
institucional manter os serviços informáticos a favor dos cidadãos, respeitando
os direitos humanos, a vida privada e as liberdades, manifestou -se contrária ao
projeto de lei fruto do Acordo do Élysée, em 2008, por meio de um relatório
enviado ao governo francês. Por ter como prerrogativa institucional a proteção
dos direitos fundamentais na rede, a autoridade deve ser consultada mediante
qualquer projeto de lei ou decreto que in uencie nos direitos dos cidadãos no
ambiente digital. Dessa forma, a CNIL advertiu sobre a desproporcionalidade
entre as medidas de proteção aos direitos autorais e a proteção da vida privada
que um sistema como o HADOPI poderia representar. Em virtude das críticas
severas ao sistema a ser implementado e, por consequência, recomendação de
sua não adoção pelo Poder Executivo francês, o governo manteve o relatório em
segredo, até ele ser revelado pelo periódico La Tribune.16 A CNIL apontava em
seu relatório diversas outras críticas à aprovação da Lei:
Ausência de estudos empíricos claros que demonstrassem ligação entre
o compartilhamento eletrônico e a perda de receita das indústrias de
entretenimento, já que a razão dada pelo governo para edição de tal lei
seria preservar a economia da indústria do entretenimento;
Hadopi poderia ter acesso a informações pessoais sem a intervenção
do Poder Judiciário e tal acesso aos dados pessoais dos usuários pode
importar em grave violação do direito à privacidade.
O envio dos avisos pelo correio pela Hadopi não é obrigatório, po-
dendo a conexão ser interrompida diretamente, sem comunicação ao
usuário.
14 Disponível em: les/page/pdf/accordselysee.pdf>. Acessado em 05
de outubro de 2011.
15 Ver .
16 Ver reportagem de La Quadrature Du Net. Disponível em: .laquadrature.net/en/latribunefr-
-loi -antipiratage -le -gouvernement -critique -par -la -cnil>. Acessado em 05 de outubro de 2011.
82 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
O Parlamento Europeu adotou, em 10 de abril de 2008, medida que foi
um aviso direto para o Governo francês. O objetivo da medida foi estimular
os Estados -membros a evitar adoção de medidas contrárias aos direitos funda-
mentais e aos princípios da proporcionalidade e e cácia e medidas de efeitos
dissuasivos, como aqueles que importem interrupção de acesso à internet.17
Independente desse aviso, o texto do Acordo do Élysée foi enviado ao Con-
gresso francês e votado em regime de urgência. A Lei foi promulgada no dia 13
de junho de 2009, sob a Lei n° 2009 -669, de acordo com o veto do Conselho
Constitucional:
“Considerando que a referida lei opera uma conciliação manifesta-
mente desequilibrada entre a proteção dos direitos autorais e do direito
ao respeito da vida privada; que o objetivo perseguido pelo legislador
necessitaria da implementação de medidas de vigilância dos cidadãos e
da instauração de um ‘controle generalizado das comunicações eletrôni-
cas’ incompatíveis com a exigência constitucional do direito ao respeito
da vida privada; que os requerentes apontam que o poder conferido aos
agentes privados os habilitam a coletar endereços de contratantes sus-
peitos de compartilhar arquivos de obras protegidas não lhes conferindo
garantias su cientes.”18
O Conselho Constitucional francês decidiu, em 10 de junho de 2009,19
pela inconstitucionalidade de diversos dispositivos do projeto, dentre eles a res-
posta graduada. O Conselho Constitucional acreditava que esse mecanismo
de desincentivo violaria o princípio da presunção de inocência, liberdade de
expressão, além de ser uma medida manifestamente desproporcional, impor-
tando em uma grave violação à Declaração Universal dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789.
A.2) A segunda fase da Lei “Hadopi 2” e os indícios de uma terceira fase “Hadopi 3”
Pouco tempo depois de promulgada a Lei Hadopi 1, em julho de 2009, foi
apresentado no Senado Federal francês, em procedimento de urgência, um pro-
jeto relativo à proteção penal da propriedade literária e artística na internet,
17 Disponível em: .
Acessado em 10 de setembro de 2012.
18 Tradução livre do ponto 21 da decisão do Conselho.
19 Íntegra da decisão do Conselho Constitucional disponível em: -constitutionnel.fr/
conseil -constitutionnel/francais/les -decisions/2009/decisions -par -date/2009/2009 -580 -dc/decision -n-
-2009 -580 -dc -du -10 -juin -2009.42666.html>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 83
em complementaridade àquela. A chamada “Lei relativa à Proteção Penal da
Propriedade Literária e Artística na Internet”20 cou conhecida como “Lei Ha-
dopi 2”. Junto com o texto da lei foi apresentado um estudo de impacto21 que
permitia ao legislador francês fazer uma análise mais profunda dos objetivos
da norma proposta. A lei complementar atribuiu à autoridade administrativa
Hadopi o poder de identi car as infrações e compilar informações de pessoas
consideradas suspeitas. A proposta tinha três objetivos:22
1. Con ar a um juiz a possibilidade de interrupção do acesso à internet,
uma punição, portanto, diretamente relacionada ao seu comportamento, mais
efetiva e adaptada ao caso que multa ou privação de liberdade Ao introduzir a
interrupção do acesso a internet como punição ao download ilegal de arquivos
contendo obras protegidas por direitos autorais, há a tentativa de promover
uma punição isonômica entre os consumidores/infratores,pensando naqueles
indivíduos com maiores recursos  nanceiros, dispostos, pois, a pagar a multa
pelo comportamento ilegal;
2. Facilitar o andamento de processos judiciais prevendo a possibilidade de
recurso às ordonnances pénales23 e ao juiz singular;
3. Dissuadir os indivíduos que tiveram seu acesso à internet temporaria-
mente interrompido por uma decisão judicial de contratar com outro provedor
de acesso à internet, por meio de uma sanção a comportamento atentatório a
dignidade da justiça — 2 anos de prisão e 30.000 euros de multa, tanto para o
indivíduo quanto para o provedor contratante.
Seguindo o procedimento legislativo, o Conselho Constitucional24 apro-
vou o texto da lei, considerando inconstitucional apenas o recurso às ordonnan-
ces pénales, não fazendo qualquer oposição à resposta graduada. O decreto de 31
20 Texto promulgado da lei disponível em: chTexte.do;jsessionid=3FAA7
9940B0304410191CF03FB2D8C8F.tpdjo16v_3?cidTexte=LEGITEXT000021209451&dateTex
te=20110913>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
21 Disponível em: le/718941.pdfçxp>. Acessado em 10 de setembro de
2012.
22 Tradução livre. Op. Cit. p. 13.
23 “Ordonnances pénales” no direito francês é um julgamento penal simpli cado previsto no artigo 524 do
Código de Processo Penal francês aplicado a alguns delitos e às contravenções, não podendo ser utilizado
em relações trabalhistas ou contra menores.
24 Decisão do Conselho Constitucional disponível em: .conseil -constitutionnel.fr/conseil-
-constitutionnel/root/bank_mm/decisions/2009590dc/2009590dc.pdf>. Acessado em 10 de setembro
de 2012.
84 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
de dezembro de 200925 promulgou a nova lei e institui a criação da Hadopi em
substituição à ARMT, referente à Lei “Hadopi 1”.
Como dito anteriormente, Hadopi é uma autoridade pública indepen-
dente, com a missão institucional de incentivar o uso responsável da internet
por seus usuários, protegendo as criações intelectuais de violações aos direitos
autorais que lhes são atribuídos. Para regular as técnicas de proteção das obras
intelectuais na internet, a alta autoridade faz a intermediação entre os titulares
de direitos de autor e conexos e os provedores de acesso à internet.
Dentre todas as funções da Hadopi, a criação de um sistema de resposta
graduada foi a que mais despertou curiosidade e debates. As noti cações envia-
das pela Hadopi, chamadas de “recomendações”, visam a informar aos usuários
sobre o seu dever de uso responsável do acesso à internet de modo que o mesmo
não divulgue ou reproduza obras protegidas por direitos autorais sem autoriza-
ção dos autores.
A Hadopi é composta por um Colégio, dividido em Diretorias temáticas,
um Secretário Geral e uma Comissão de Proteção de Direitos (CPD). A Co-
missão de Proteção de Direitos é a seção da Hadopi responsável pelo envio de
recomendações aos usuários que faltaram com seu dever de uso responsável.
São legitimados a comunicar a Hadopi violações de direitos de autor e conexo
na internet os organismos de defesa pro ssional regularmente constituídos, as
sociedades de arrecadação e distribuição de direitos, o Centro Nacional da Ci-
nematogra a e Imagem Animada e o Procurador da República.
É a CPD quem examina as alegações de violação enviadas por esses legiti-
mados e, se identi car um comportamento suscetível a violar direitos autorais,
a CPD, em até dois meses, envia a 1ª recomendação, por via eletrônica, noti -
cando o usuário das condutas delituosas que lhe são atribuídas e relembrando
seu dever de uso responsável da internet.
Se dentro de seis meses esse mesmo usuário voltar a cometer violações
semelhantes, a CPD envia a 2ª recomendação, tanto por via eletrônica, como
por uma carta por via postal cujo recebimento deve ser acusado e assinado. Se
após a segunda noti cação o usuário reincidir e continuar a efetuar downloads
ilegais, a CPD lhe informa, em 3ª recomendação, que seu caso será submeti-
do a uma investigação criminal, enviando seu dossiê ao Parquet (o Ministério
Público francês). É nesta fase em que o usuário pode ter seu acesso a internet
interrompido por até um ano, sem prejuízo de multas.
25 Texto do decreto disponível em: chTexte.do;jsessionid=D46B4A842F8F25
C2AD05814838C41B48.tpdjo02v_3?cidTexte=JORFTEXT000021573619&dateTexte=20100104>.
Acessado em 10 de setembro de 2012.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 85
Críticas à resposta graduada e à autarquia emanam de diversos atores, des-
de os usuários da internet e as empresas de telecomunicações, a artistas, produ-
tores independentes e membros da sociedade civil que articulam a oposição a
lei, como o grupo La Quadrature du Net.26 Os maiores pontos de tensão da lei
serão tratados no próximo item.
Um grupo de produtores independentes de música franceses se uniu para
acionar os parlamentares franceses contra a lei na carta aberta27Hadopi: La
création sacri ée”, criticando a estruturação da lei e da autoridade independente
e fazendo proposições de auxílio ao desenvolvimento da cultura.
Uma “carta aberta aos espectadores cidadãos28 foi também apresentada
por nomes de peso da indústria cinematográ ca francesa, como Christophe
Honoré e a “bela da tarde” Catherine Deneuve. A carta aponta a importância
da revolução digital para difusão, promoção e acesso das obras do cinema. Os
artistas classi caram a lei como “demagógica”, “tecnicamente inaplicável”, “pu-
ramente repressiva”, além de ser uma “tentativa vã de erradicar a pirataria pela
sanção, sem se preocupar com a criação de uma oferta legal, disponível e aberta
de download na internet”, não sendo nem os criadores nem os consumidores
alvos da mesma.
Em nível comunitário, artistas do Featured Artists Coalition, união de mais
de 140 artistas da indústria da música da Grã -Bretanha,29 defenderam a não
criminalização do download de músicas, temendo a adoção pela Grã -Bretanha
de leis como a Hadopi. Os artistas apontaram a importância da adequação da
indústria da música aos desa os digitais. Apontaram também para a importân-
cia da apropriação pelos próprios artistas de seus direitos patrimoniais, no lugar
de grandes gravadoras, determinando eles próprios quando e como a sua obra
poderia ser utilizada.
Essas manifestações contrárias à forma pela qual a Lei Hadopi trata os
usuários da internet possuem em comum a percepção de que a  gura do fã, ou
seja, aquele que gosta e consome determinado conteúdo, não deve ser tratada
como um típico criminoso que ofende a propriedade alheia. A rede possibilita
novas formas de interação entre quem produz conteúdo e quem o recebe e dele
26 Para mais informações sobre La Quadrature du Net, ver: .laquadrature.net/fr/HADOPI>.
Acessado em 10 de setembro de 2012.
27 A carta aber ta pode ser lida em: .liberation.fr/economie/0101566541 -hadopi -la -creation-
-sacri ee>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
28 Carta aberta pode ser lida em: -ouverte -aux -spectateurs,6877.html>. Acessado
em 10 de setembro de 2012.
29 Artigo sobre o tema do site Billboard disponível em:
industry/news/e3i cfe0c0b0255a5af3401db90f5dd412>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
86 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
se aproveita para  ns artísticos, culturais e de entretenimento, não raramente
até mesmo criando novas obras intelectuais.
Na mesma direção, o Ministro da Cultura de Portugal à época, António
Pinto Ribeiro,30 assegurou que Portugal não adotaria uma lei como a france-
sa no Conselho dos 27, da União Europeia, considerando que a Lei Hadopi
era, na verdade, uma iniciativa repressora. O ministro também apontou para a
confusão constantemente criada entre criminalização de diversas condutas na
internet como pedo lia e trá co de pessoas e criminalização da internet per se.
O ex -Ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, em entrevista ao jornal
espanhol El País, que ganhou repercussão na França, na época em que se discu-
tia a “Hadopi 2” também defendeu a não criminalização de compartilhamento
de arquivos:
“Eu defendo que o público experimente e se aproprie totalmente
das possibilidades que oferecem as tecnologias.” — Sem limites? “Os
limites terão que ser estabelecidos através de um amplo debate democrá-
tico. A regulação da internet é de competência da sociedade.”31
Mais recentemente, em discurso no Fórum de Avignon, que reuniu os Mi-
nistros da Cultura dos países do G -8 e G -20, no dia 18 de novembro de 2011,
o então Presidente Francês, Nicolas Sarkozy, revelou planos de reformulação
das competências da Hadopi para combater também o streaming32 ilegal. Esse
discurso marcou o início de um debate público sobre uma eventual “Hadopi
3”, que nessa terceira fase combateria o uso ilegal de obras na internet não só
pelo compartilhamento, mas também pelo streaming.
Apenas duas semanas após esse pronunciamento, a Hadopi encomendou
um estudo sobre o modelo econômico dos sites de streaming e o atual ministro
da Cultura e Comunicação francês, Frédéric Mitterand, declarou que uma das
principais falhas da Hadopi é a ausência de previsão de investigação por uso ilegal
de obra na internet via streaming. O ministro declarou que as primeiras respostas
da atuação contra o streaming deveriam sair no primeiro trimestre de 2012.33
30 Disponível em: .aspx?content_id=1229946>. Acessado
em 10 de setembro de 2012.
31 Disponível em:
elpepicul/20090712elpepicul_2/Tes>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
32 Streaming é uma forma de divulgação de mídia online, de execução continuada, em que o usuário não
tem a necessidade de fazer download do arquivo. Para mais informações, veja o verbete “streaming” da
Wikipedia. Disponível em . Acessado em 11 de setembro de
2012.
33 Diversos artigos na imprensa francesa falaram das pronunciações do ministro, dentre eles destaca -se
o site Numérama:
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 87
A.3) Principais críticas à Hadopi
Desde a primeira fase da Hadopi, a Autoridade francesa de tutela dos cidadãos
na rede (CNIL) aponta irregularidades que são defendidas até hoje. Nunca
foram revelados estudos empíricos que comprovassem qualquer relação entre o
compartilhamento de arquivos e a queda de receita das empresas da indústria
do entretenimento, o que justi caria uma autoridade como a Hadopi. Além
do mais, a maneira como os dados dos usuários são acessados pela autoridade,
sem qualquer procedimento judicial, implicam em grave violação de direitos
da privacidade e criam uma vigilância permanente das comunicações realizadas
na internet. A Hadopi assume uma posição de presunção de culpa do usuário
e impõe uma responsabilização aos intermediários incompatível com o dano.
Em relação às críticas envolvendo a violação de privacidade e  ltragem
generalizada da internet operada pela Hadopi, a Corte de Justiça da União
Europeia já se posicionou pela sua ilegalidade nos acórdãos “Promusicae” e
“SABAM/Scarlett”, detalhados no item seguinte.
O Governo da Suíça, em relatório sobre o uso ilícito de obras na internet
encomendado para proposta legislativa, recusou de plano a adoção de um mo-
delo como o criado para a Hadopi.
Se por um lado, os dados revelados pela autarquia francesa apontam uma
queda no número de downloads e compartilhamento ilegal de arquivos na Fran-
ça em 2011, o governo suíço entendeu que a resposta graduada, de um ponto
de vista objetivo, é medida cujas consequências são impossíveis de se avaliar a
longo prazo. A resposta graduada seria — conforme exposto no relatório — um
mecanismo de desincentivo de condutas em três etapas, que aumenta a punição
do infrator na medida de sua reincidência, até a interrupção da conexão.34
O relatório aponta ainda que a resposta graduada necessita da implemen-
tação de um amplo aparato estatal. Nesse sentido, os custos anuais de fun-
cionamento da Hadopi são estimados em mais de 12 milhões de euros, de
acordo com o orçamento público francês de 2011 do Ministério da Cultura e
da Comunicação. O governo suíço ainda questiona a compatibilidade dos me-
canismos de reposta graduada com as convenções internacionais, em especial
o relatório conduzido pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas
que determinou que a interrupção do acesso à internet é uma violação ao art.
19, alínea 3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
-pousse -au -streaming.html>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
34 Para mais informações sobre o relatório em português, ver Observatório Brasileiro de Políticas Digi-
tais:
-Internet>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
88 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Além de altos custos públicos anuais para funcionamento da autarquia, foi
estimado que os provedores de acesso à internet gastariam de 60 a 70 milhões
de euros entre 2009 e 2012 para adequar -se ao sistema da Hadopi,35 sendo que
tal sistema, mesmo com altos custos, não possui qualquer certeza de efetivida-
de, proporcionalidade ou e ciência.
Por último, o acesso à internet é entendido pelos órgãos da União Europeia
como um direito fundamental. Seguindo esse entendimento, o Parlamento Eu-
ropeu adotou o relatório do deputado grego Stavros Lambrinidis,36 sob forma
de recomendação ao Conselho Europeu, que manifesta -se expressamente con-
tra qualquer punição que importe em privação de acesso37 à internet, pois é a
internet um veículo de emancipação e participação política do usuário, refor-
çando a cidadania, na medida em que facilita o acesso a informações públicas,
participação nas discussões políticas, liberdade de expressão, acesso à educação
e inúmeros direitos fundamentais.
A.3.1) As críticas na jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia
As críticas direcionadas à Lei Hadopi, quanto à ausência de dados empíricos
que relacionem a queda de receita da indústria do entretenimento, aumento da
35 Reportagem do Le Monde de 2009. Disponível em: .lemonde.fr/technologies/ar-
ticle/2009/03/10/hadopi -des -mesures -couteuses -pour -les -fai_1165686_651865.html#ens_
id=1162478&xtor=RSS -3208>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
36 Disponível em: -//EP//TEXT+TA+P6 -TA-
-2009 -0194+0+DOC+XML+V0//FR&language=FR>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
37 Sobre o acesso irrestrito à internet, o Relatório Stavros a rma: “Un accès à Internet sans réserve et sûr a)
participer aux e orts visant à faire d’Internet un instrument important d’émancipation des utilisateurs, un
environnement qui permet l’évolution d’approches «par le bas» et de la démocratie informatique, tout en
veillant à l’établissement de garanties signi catives, étant donné que de nouvelles formes de contrôle et de
censure peuvent se développer dans ce domaine; la liberté et la protection de la vie privée dont les utilisateurs
béné cient sur Internet devraient être réelles et non illusoires; b) reconnaître qu’Internet peut être une pos-
sibilité extraordinaire de renforcer la citoyenneté active et que, à cet égard, l’accès aux réseaux et aux contenus
est l’un des éléments -clé; recommander que cette question continue à être développée en posant comme principe
que chacun a le droit de participer à la société de l’information et que les institutions et les acteurs à tous les ni-
veaux ont pour responsabilité générale de participer à ce développement, luttant ainsi contre les deux nouveaux
dé s de l’analphabétisme informatique et de l’exclusion démocratique à l’ère électronique(12) ; c) demander
instamment aux États membres de répondre à une sociét é de plus en plus sensibilisée à l’information et de trou-
ver des moyens d’assurer une meilleure transparence des décisions grâce à un accès plus large des citoyens aux
informations stockées par les gouvernements, a n de permettre à ceux -ci d’en tirer parti; appliquer le même
principe à leurs propres informations; d) veiller, avec d’autres acteurs concernés, à ce que la sécurité, la liberté
d’expression et la protection de la vie privée, ainsi que l’ouverture sur Internet ne soient pas considérés comme
des objectifs concurrentiels mais soient assurés simultanément au sein d’une vision globale qui réponde de façon
appropriée à tous ces impératifs; e) veiller à ce que les droits légaux des mineurs à la protection contre toute
atteinte, tels que prescrits par la Convention des Nations unies relative aux droits de l’enfant et traduits dans
la législation communautaire, soient pleinement re étés dans l’ensemble des actions, instruments ou décisions
pertinents ayant trait au renforcement de la sécurité et de la liberté sur Internet;
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 89
pirataria e contrafação e o uso de obras intelectuais na internet, bem como au-
sência de e ciência e proporcionalidade do modelo da autarquia, possibilidade
de violação a direito de privacidade e liberdade de expressão encontram -se na
jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia (CJUE) sobre sociedade
da informação.
Caso Promusicae (C -275/06)38
O primeiro caso analisado na Corte de Justiça da União Europeia que tratou de
forma sistemática a regulação da criação intelectual na internet, de 2006, envol-
veu os Produtores de Música da Espanha (Promusicae), associação sem  ns lu-
crativos, que contempla produtores e editores de gravações musicais e audiovisu-
ais, e a Telefónica de Espanã SAU (Telefónica), fornecedora de acesso à internet.
A Promusicae requereu ao tribunal espanhol que a Telefónica lhe forneces-
se o nome e residência de determinados usuários da internet após ter identi -
cado que uma série de endereços IP39 foi utilizada em determinado momento
para troca de arquivos musicais, sobre os quais os seus membros detêm direitos
de autor. A Promusicae identi cou os usuários através do endereço IP e por
meio do dia e hora da conexão e exigiu, portanto, que a Telefónica lhe forne-
cesse o nome e endereço dos usuários referentes aos endereços de IP coletados.
O Tribunal espanhol, que submeteu a questão à Corte de Justiça da União
Européia (CJUE), decidiu que, de acordo com a Ley de Servicios de La Sociedad
de La Información y de Comercio Electrónico, da Espanha, o provedor de acesso à
internet não poderia, em caso algum, fornecer os dados a esse órgão jurisdicio-
nal. Segundo o tribunal, somente no âmbito de uma investigação criminal ou
em casos que envolvessem a segurança pública ou estivesse em causa a segurança
nacional, o operador de comunicações eletrônicas ou o prestador de serviços
poderia fornecer os dados que, por lei, é obrigado a armazenar. O objetivo do
Tribunal Espanhol, ao enviar a questão a CJUE, foi buscar esclarecer a compati-
bilidade das diretivas europeias relacionadas à sociedade da informação, dentre
elas a Diretiva 2001/29/CE com a restrição da obrigação de transmitir os dados
de ligação ao âmbito dos processos criminais e análogos,  cando excluídos dessa
obrigação os processos cíveis.
38 Íntegra do Acórdão Promusicae — C -275/06, em português disponível em:
juris/document/document.jsf?docid=62901&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ= rst&
cid=731954>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
39 “Endereço de IP” signi ca “código atribuído a um terminal de uma rede para permitir sua identi cação,
de nido segundo parâmetros internacionais”, conforme de nição do Art. 5º, IV do Marco Civil da
Internet.
90 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Em relação aos direitos de autor e conexos na sociedade da informação,
entendeu a Advogada Geral do caso, Mme. J. Kokott, que tanto os direitos de
propriedade dos titulares de direitos autorais e conexos, quanto a proteção dos
dados pessoais, que se relacionam ao direito de privacidade, possuem natureza
de direito fundamental garantidos em diversos diplomas comunitários, como
a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberda-
des Fundamentais, de 1950 (CEDH) e a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, de 2000 (Carta). As exceções a esses direitos devem ter caráter
excepcional com fulcro em um interesse social, como indica o ponto 54 do
Acórdão Promusicae:
“54. (...) uma ingerência na esfera privada — como é o tratamento
de dados pessoais — deve ser proporcionada face ao objectivo prossegui-
do. Assim, tem de haver uma necessidade social imperiosa e a medida
tomada deve ser proporcionada ao objectivo legítimo que se pretende
alcançar.”
Cabe aos Estados -membros, portanto, na transposição das diretivas comu-
nitárias, fazer o justo equilíbrio entre as proteções dos direitos fundamentais. A
efetiva garantia dos direitos autorais não pode signi car uma grave violação à
esfera privada dos indivíduos. Os juízes comunitários chamaram atenção para
o fato de que o direito penal não é o único meio pelo qual o legislador nacional
pode impor seu juízo negativo para uma conduta, como nesse caso, o compar-
tilhamento de arquivos de música.
Somado a isso, os juízes entenderam que não havia dados su cientes que
indicassem um dano real causado pelo lesharing.40 E, principalmente quando
feito sem  ns lucrativos, o compartilhamento de arquivos não representaria
uma violação su cientemente grave que justi casse a criação de uma exceção ao
direito à privacidade e à proteção de dados pessoais.
Os juízes questionaram, por  m, com base no princípio da previsibilidade,
a efetividade dos endereços de IP e o uso de data e hora para  ns de imposição
de punibilidade por violação de um direito de autor por meio de compartilha-
mento de arquivos. Nas palavras da Advogada -Geral J. Kokott, no ponto 115
do Acórdão:
40 Neste ponto, os juízes comunitários do caso  zeram referência ao relatório do Grupo de Trabalho da
Economia da Informação da OCDE que trata do tema, disponível em:
cd/13/2/34995041.pdf>. Acessado em 10 de setembro de 2012 (p.73 e ss).
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 91
“(...) a circunstância de terem sido cometidas infracções aos direitos
de autor numa determinada data e com recurso a um endereço IP não
demonstra cabalmente que as mesmas foram cometidas pelo titular da
ligação à Internet a quem o endereço IP foi atribuído nessa data. Pelo
contrário, é possível que terceiros tenham utilizado a sua conexão à In-
ternet ou o seu computador. Isso até pode suceder sem o conhecimento
do titular da conexão à Internet, por exemplo, se este, para evitar uma
ligação por cabo, utilizar uma ligação através de uma rede local de radio-
comunicações insu cientemente segura, ou se terceiros se ‘apoderarem
do seu computador através da Internet.”41
O Acórdão Promusicae é relevante quando atenta para a proteção da vida
privada no debate da criação intelectual na internet e a proporcionalidade das
medidas de proteção dos direitos autorais face a direitos fundamentais de usu-
ários da internet e, não menos, fãs. O acórdão questiona também a utilização
dos endereços de IP como medida e ciente e protetiva da vida privada na ope-
racionalização de sistemas de monitoramento de transferência de arquivos e uso
de obras na internet.
Tornou -se, por isso, um caso referência para proteção da vida privada e
proteção de direitos autorais na internet, usado mesmo como base para o acór-
dão que ganhou repercussão da mídia em 2011, SABAM/Scarlet.
Caso SABAM/Scarlet (C -70/10)42
A CJUE decidiu, em Acórdão de 24 de novembro de 2011, pela ilegalidade de
ltragem e bloqueio pelos fornecedores de acesso à internet (FAI) em virtude de
downloads de arquivos com conteúdo que viole direitos autorais e conexos. Um
sistema de  ltragem e bloqueio da internet deve assegurar um justo equilíbrio
entre propriedade intelectual de um lado e liberdade de empresa, proteção de
dados pessoais e liberdade de comunicação e informação de outro.
41 A Advogada Geral faz referência a estudo sobre segurança de redes sem  o: documento de trabalho do In-
ternationalWorkingGroupon Data Protection in Telecommunications, de 15 de abril de 2004, sobre os ris-
cos potenciais de redes sem  os, disponível em inglês e em alemão em: .datenschutz-berlin.
de/doc/int/iwgdpt/index.htm>. Acessado em 10 de setembro de 2012. Quanto aos métodos de ataque,
v. Erik Te ws, Ralf-PhilippWeinmann e Andrei Pyshkin, Breaking 104 bit WEP in lessthan 60 seconds,
disponível em: . Acessado em 10 de setembro de 2012.
42 Íntegra do Acórdão SABAM/Scarlet — C -70/70, em português, disponível em:
eu/juris/document/document.jsf?docid=81776&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ= rs
t&cid=762531>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
92 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Em 2004, a Société belge des auteurs, compositeurs et éditeurs SCRL (SA-
BAM), sociedade de gestão que representa os autores, compositores e editores
de obras musicais autorizando o uso de obras protegidas por terceiros, atestou
a existência de diversos downloads de obras de seu catálogo, sem autorização,
através de mecanismos P2P de usuários do provedor Scarlet.
A entidade resolveu noti car o provedor por meio do Tribunal de Primeira
Instância de Bruxelas, defendendo que a Scarlet, enquanto provedora de acesso,
está em posição mais adequada para oferecer medidas que cessem violações de
direitos autorais cometidas por seus clientes. A SABAM solicitou de início a
constatação de existência de violações a direitos de autor de obras musicais de
seu repertório, sobretudo em relação ao direito de reprodução e de comunica-
ção ao público, viabilizados pela troca não autorizada de arquivos de usuários
da internet provida pela Scarlet. O segundo pedido foi a condenação da Scarlet
em fazer cessar tais violações, tornando -as impossíveis ou bloqueando de todas
as formas o envio ou recepção, entre seus usuários, de arquivos contendo obras
musicais compartilhadas sem autorização dos detentores de direito, sob pena
de multa (astreinte). Por  m, a SABAM requereu que a Scarlet comunicasse as
medidas que foram tomadas para respeitar a ordem judicial.
O Presidente do Tribunal de Primeira Instância de Bruxelas, em 26 de
novembro de 2004, admitiu a existência de violações de direitos autorais, no
entanto solicitou um laudo que permitisse avaliar se as soluções exigidas pela
SABAM eram tecnicamente possíveis, se elas permitiriam  ltrar unicamente o
compartilhamento P2P com conteúdo ilegal, se existiria outro dispositivo ele-
trônico que permitiria o controle do P2P e qual seria seu custo.
O laudo técnico concluiu que apesar das inúmeras barreiras técnicas, não
é completamente rejeitável a possibilidade de  ltragem e bloqueio de compar-
tilhamento ilícito de arquivos eletrônicos. E por isso, em 2007, o Tribunal de
Primeira Instância condenou a Scarlet a fazer cessar as violações de direitos
autorais, impossibilitando que seus clientes enviem ou recebam qualquer arqui-
vo por meio de P2P ou qualquer arquivo que contivessem obras musicais sob
gestão da SABAM.
O provedor Scarlet apelou, alegando impossibilidade de se conformar às
exigências judiciais, uma vez que a e cácia de um sistema de bloqueios ou  l-
tragens nunca foi provada e que a implementação de tais dispositivos encontra
inúmeros obstáculos práticos e fragilidades. Além disso, toda tentativa de blo-
queio de conteúdo seria uma medida destinada ao fracasso em curtíssimo tem-
po, pois o número considerável de compartilhamento P2P tornaria impossível
a veri cação de seu conteúdo por terceiros.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 93
A Scarlet alegou ainda que a medida judicial violava a norma nacional que
transpôs o art. 15 da Diretiva 2000/31, pois lhe impõe um dever de vigilân-
cia generalizada (obligation de surveillance générale) das comunicações de seus
usuários, já que para  ltrar e bloquear os compartilhamentos P2P supõe -se
necessário um controle geral sobre todas as comunicações entre seus usuários.
Sustentou ainda que a implementação de tal sistema de  ltragem impõe vio-
lações a normas comunitárias, sobre proteção de dados pessoais e sigilo nas
comunicações, entendidos os endereços IP como dados pessoais.
A jurisdição recursal decidiu que antes de veri car se um mecanismo de
ltragem e bloqueio de compartilhamento P2P seria possível e e caz, dever -se-
-ia avaliar se tais imposições são adequadas às normas da UE, por meio de um
envio de questão prejudicial à CJUE. O Juiz Nacional da Bélgica solicitou que a
CJUE respondesse: (A) Se as referidas diretivas interpretadas em conformidade
com os artigos 8º (vida privada) e 10º (liberdade de expressão) da Carta de Di-
reitos Fundamentais permitiriam aos Estados -membros: (1) autorizar que um
juiz nacional imponha medidas de cessação de violação de direitos autorais e
conexos aos intermediários, cujos serviços são utilizados por terceiros; (2) obri-
gar um fornecedor de acesso à internet a implementar sem aviso aos clientes, in
abstrato e a titulo preventivo, sem limitação temporal, um sistema de  ltragem
de toda comunicação eletrônica (comunicação e recepção) viabilizadas por seu
serviço de internet, por meio de P2P, com o objetivo de identi car a circulação
de arquivos eletrônicos contendo obras artísticas sobre a qual o demandante
alega seus direitos e bloquear em seguida a transferência desses arquivos, e (B)
Em caso de resposta positiva, se tais diretivas imporiam ao juiz nacional a apli-
cação do princípio da proporcionalidade, uma vez que ele deve decidir sobre a
e cácia da medida.
Com base nas diretivas evocadas, em especial a Diretiva 2001/29/CE e
citando a decisão da CJUE no Acórdão Promusicae referido anteriormente, o
juiz comunitário chegou às seguintes conclusões:43
Embora seja possível que se exija dos intermediários a adoção de
medidas que ponham  m a violações de propriedade intelectual no meio
eletrônico, uma obrigação de vigilância generalizada é incompatível com
o art. 3º, da Diretiva 2004/48, que determina que as medidas adotadas
por tal diretiva devem observar o princípio da equidade, ser proporcio-
nais e não excessivamente custosas.
43 Conclusões do Advogado -Geral, Ponto 115 da decisão do Acórdão. Disponível em:
pa.eu/juris/document/document.jsf?docid=81776&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=
rst&cid=762531>. Acessado em 18 de setembro de 2012.
94 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Nestas condições, é preciso examinar se as determinações impostas aos
provedores de acesso à internet de implementação de um sistema de  ltragem
os obrigaria a uma vigilância ativa do conjunto de dados de cada cliente seu, a
m de prevenir toda e qualquer violação de direitos de propriedade intelectual.
Um sistema de  ltragem e bloqueio da internet, como desejado pelas so-
ciedades de gestão coletiva de direitos autorais e conexos, conforme explica o
Acórdão SABAM/Scarlet, supõe que os provedores (1º) identi quem, no con-
junto de todas as comunicações eletrônicas de seus clientes, os arquivos relevan-
tes em tráfego P2P; (2º) identi quem, dentre todos os artigos compartilhados
por P2P, aqueles que contenham as obras sobre as quais os titulares de proprie-
dade intelectual pretendam exercer seus direitos; (3º) determinem, dentre esses
arquivos, quais são compartilhados ilegalmente e (4º) bloqueiem o comparti-
lhamento identi cado como ilegal. Um sistema estruturado dessa forma exige
uma vigilância ativa da totalidade de comunicação eletrônica realizada pelos
provedores de acesso à internet, englobando todas as informações transmitidas
por todos seus usuários.
Sem desconsiderar que a proteção de direitos de propriedade intelectual é
assegurada na Carta de Direitos Fundamentais da UE, os juízes comunitários en-
tenderam que não decorre deste dispositivo e nem é entendimento da CJUE que
estes direitos são intangíveis e que, portanto, sua proteção deve ser garantida de
forma absoluta. Como entendido no Acórdão Promusicae, os direitos de proprie-
dade intelectual devem ser interpretados à luz de outros direitos fundamentais.
A CJUE entendeu ainda que é dever das autoridades jurisdicionais nacio-
nais, na imposição de medidas de proteção dos titulares de direitos de proprie-
dade intelectual, atentar para a proporcionalidade entre a proteção desse direito
e os direitos fundamentais das pessoas atingidas por tais medidas. Nesse caso
especí co, as autoridades nacionais devem assegurar o justo equilíbrio entre a
proteção dos titulares de direitos de propriedade intelectual e a liberdade de em-
presa, das quais se bene ciam os provedores, de acordo com o art. 16 da Carta.
Tal sistema viola a liberdade de empresa dos provedores, já que lhe impõe um
sistema informático altamente custoso, complexo e permanente, violando o art.
3, p. 1 da Diretiva 2004/48, que exige que as medidas de proteção de proprie-
dade intelectual não sejam inutilmente complexas e custosas.
Os efeitos de uma imposição como essa não se limitariam à imposição aos
provedores de fazer cessar uma lesão. A CJUE entendeu que tal imposição impor-
taria em uma vigilância permanente suscetível de violar direitos de seus clientes,
especialmente a proteção de seus dados pessoais, bem como a liberdade de enviar e
receber comunicações e informações, direitos protegidos pelos arts. 8 e 11 da Carta.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 95
Por  m, essa imposição violaria também a liberdade de informação, pois
não haveria como distinguir de forma e caz um conteúdo ilícito de outro lícito,
implicando na possibilidade de bloqueio de conteúdos lícitos. A CJUE atenta
que muitas obras disponibilizadas na internet são frutos de exceções e limitações
aos direitos autorais que variam de Estado -membro para Estado -membro, ou que
assim são disponibilizadas por uma decisão pessoal do autor, sendo essa forma de
comunicação de sua obra juridicamente tutelada pelos ordenamentos nacionais.
II. A regulamentação da criação intelectual na internet no Brasil
Desde 1999, tramita no Congresso Nacional brasileiro, Projeto de Lei (PL) que
dispõe sobre crimes cometidos na internet, o PL nº 84/9944, conhecida como
Lei Azeredo, pelo sobrenome do propositor de substitutivo que ganhou grande
repercussão na mídia nacional.
Na mesma linha francesa, o Brasil pretendeu iniciar a regulação das condu-
tas dos usuários da internet por uma via repressiva penal. Se aprovado, condutas
costumeiras de um usuário da internet seriam criminalizadas, como comparti-
lhamento de arquivos, transferência de uma obra legalmente adquirida de um
dispositivo para outro, instaurando um regime de controle e monitoramento
em diversos serviços prestados na Internet brasileira.45
Respostas a tais medidas repressivas também foram apresentadas no con-
texto brasileiro. O Marco Civil da Internet Brasileira é uma proposta de “consti-
tuição da internet”, com objetivo de estabelecer direitos e deveres fundamentais
aos usuários da internet, antes de tomadas medidas de repreensão de condutas.
Trata -se de uma parceria do Ministério da Justiça com o Centro de Tecnologia
e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio e apoiada pelo projeto Cultura Digital
do Ministério da Cultura. Ainda sobre o tema, propostas de reforma à Lei de
Direitos Autorais brasileira objetivam adequar as novas necessidades dos usuá-
rios da rede no acesso e uso dos bens culturais na internet e podem ser elencadas
no cenário atual de regulação da criação intelectual na internet brasileira.
44 PL84/99. Disponível em: .br/proposicoesWeb/ chadetramitacao?idProposic
ao=15028>. Acessado em 11 de setembro de 2012.
45 Para maiores informações sobre o PL 84/99 e suas principais críticas, ver A2K Brasil:
brasil.org.br/wordpress/lang/pt -br/2010/11/centro -de -tecnologia -e -sociedade -apresenta -estudo -sobre-
-o -texto -substitutivo -do -pl -azeredo/>. Acessado em 11 de setembro de 2012.
96 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
A) Reforma da Lei de Direitos Autorais
Da mesma forma que a França, o Brasil desde a metade da década passada tem
buscado tratar no plano legislativo da adequação entre criação intelectual e o
ambiente digital. Em 2007, o Ministério da Cultura do Brasil iniciou um Fó-
rum de Debates sobre o tema e, em 2010, promoveu um fórum para criação de
um debate colaborativo online46 sobre uma nova lei.
A Lei de Direitos Autorais (LDA) é usualmente criticada por seu pouco
equilíbrio apresentado entre questões ligadas ao interesse público e os interes-
ses privados na remuneração pelo uso de obras. Essa questão é especialmente
grave no campo das limitações e exceções aos direitos autorais. Embora seja
relativamente nova, de 1998, a lei não acompanhou os desa os do acesso e uso
generalizado dos produtos culturais na internet, não permitindo aos usuários da
internet desempenhar condutas típicas como:
“— cópia para preservação da obra ou para  ns didáticos, inclusive por
meio de digitalização;
— cópia privada, ainda que visando acesso a obras que se encontram fora
de circulação comercial;
— exibição de  lmes em sala de aula, práticas bastante comuns em ativida-
des educacionais (em cursos de línguas, por exemplo);
— o remix, uma característica marcante das obras elaboradas nos dias de
hoje (mesmo que o remix seja uma prática bastante antiga)”.47
Em relação especial à cópia privada, a França, em 23 de novembro de
2011, continuando a linha repressiva já explorada pelo processo Hadopi, votou
uma emenda em Projeto de Lei sobre remuneração dessa limitação ao direito
autoral. O texto buscava alterar o Código de Propriedade Intelectual e incluir
o requisito de “licitude da fonte” na exceção da cópia privada.48 Em sentido
contrário, o Governo Suíço, no relatório anteriormente indicado, apontou que
o legislador suíço, ao optar por uma regulamentação tecnicamente neutra, já
havia tirado o internauta da ilegalidade ao permitir a cópia para  ns pesso-
ais, independente da origem ilícita do arquivo copiado. Rejeitando, portanto,
propostas legislativas para regulação da criação na internet, a Suíça se valeu da
exceção da cópia privada para retirar o usuário da ilegalidade.
46 Realizado no site .br/consultadireitoautoral/>. Acessado em 11 de setembro de
2012.
47 Direitos autorais em reforma/Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, Cen-
tro de Tecnologia e Sociedade. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2011, p. 47. Disponível em:
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/8789/CTS%20%20Direitos%20Autorais%20
em%20Reforma.pdf?sequence=1>. Acessado em 11 de setembro de 2012.
48 La Quadrature du Net sobre a cópia privada. Disponível em: .laquadrature.net/fr/prives -de-
-copie -les -droits -du -public -discretement -lamines -a -lassemblee>. Acessado em 11 de setembro de 2012.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 97
A LDA brasileira ainda está em debate no Congresso Nacional e o texto
proposto na primeira fase do debate foi modi cado,49 especialmente na gestão
da ministra Ana de Hollanda, no Governo da Presidente Dilma Roussef.
De toda forma, espera -se que, a exemplo do criticado modelo francês, o
Brasil adote posição contrária e promova um maior equilíbrio entre os inte-
resses públicos e privados existentes na criação intelectual. O exemplo francês,
misto de fracasso e antipatia, não deveria ser o rumo a ser tomado pelo governo
brasileiro.
B) Marco Civil da Internet no Brasil
O Marco Civil, como dito anteriormente, é uma proposta de constituição de
direitos e deveres da internet, tanto para usuários quanto para o Poder Público.
Para aproximar -se mais da realidade e necessidade dos usuários da internet,
o Marco Civil foi submetido a um amplo debate democrático por meio de
uma plataforma online50 com contribuições marcando os diferentes interesses
envolvendo a regulação da internet: usuários, organizações da sociedade civil,
empresas nacionais e estrangeiras e Embaixadas brasileiras, que apresentaram a
visão da regulação da internet nos países em que estão localizadas.
Consolidados os comentários em um texto de Projeto de Lei, o mesmo foi
enviado ao Congresso Nacional pela Presidente Dilma Roussef e tramita sob o
nº 2126/201151. Se aprovado, o Marco Civil garantirá o acesso à internet como
um direito essencial ao exercício da cidadania e os direitos fundamentais dos
usuários, destacados mesmo pela jurisprudência da CJUE, como liberdade de
expressão, privacidade e proteção dos dados pessoais.
Quanto à disponibilização de conteúdo ilegal na internet, os provedores
de acesso à internet não serão responsabilizados, nem terão um dever de fazer
cessar lesão a direito, como no modelo francês, salvo disposição do art. 15,
que evidencia também a necessidade do contraditório e da ampla defesa para
49 “Com a mudança de ministros na pasta da Cultura, no início de 2011, a proposta de reforma da LDA
foi revista e voltou a ser objeto de consulta, entre 25 de abril e 30 de maio de 2011 (doravante “Segunda
Proposta de Revisão da LDA”), sendo que desta vez sem a mesma amplitude no debate, já que os comen-
tários ao texto proposto não eram públicos. Posteriormente, entretanto, consolidação dos comentários
foi publicada e pode ser acessada no seguinte endereço: .br/site/2011/08/11/
ultima -fase -da -revisao -da -lda/>.” Op. Cit. (2011), p. 15
50 Plataforma online do Marco Civil - . Acessado em 11 de setembro
de 2012.
51 PL 2126/11 disponível em .br/sileg/integras/912989.pdf>. Acessado em 12 de
setembro de 2012.
98 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
apreciação de situações de violação de direitos autorais na internet (contrário da
discricionariedade administrativa da Hadopi):
Art. 15. Salvo disposição legal em contrário, o provedor de apli-
cações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos de-
correntes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial es-
pecí ca, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado
como infringente. 52
O texto do Marco Civil ao condicionar a remoção de conteúdo disponi-
bilizado online a uma ordem judicial reforça o caráter público da internet. Pois
exigir que a remoção seja feita pelos próprios provedores, além de questionável
quanto à liberdade de expressão, implica em uma privatização da gestão de um
recurso público.
O Marco Civil da internet, antes de estabelecer punições aos usuários por con-
dutas consideradas repudiáveis por alguns atores econômicos (no caso da criação
intelectual, a indústria de cultura e entretenimento), apresenta os fundamentos53 e
princípios já identi cados por usuários, empresas e Poder Público como intrínse-
cos à própria internet e essenciais ao seu uso. Ao identi car como fundamentos do
uso da internet os direitos humanos e a cidadania em meio digital, o Marco Civil
garante como princípio da internet no Brasil a privacidade, a proteção dos dados
e a neutralidade da rede, preservando sua natureza participativa e a escala mundial
da rede. No que concerne às críticas direcionadas à Hadopi, o Marco Civil garante
especi camente em seu texto a não suspensão do acesso à internet.
Conclusão
Para países de sólida tradição democrática, como a França, a ampla utilização
da internet para produção e consumo de bens culturais representou o aumento
de possibilidades de violações aos direitos de exclusividade dos autores e intér-
52 A redação foi alterada no substitutivo oferecido pelo parecer da Comissão Especial, com relatoria do
Deputado Federal Alessandro Molon.
53 O art. 2º do Marco Civil da Internet ou PL 2126/2011 identi ca, em sua versão original, os seguintes
fundamentos: A disciplina do uso da Internet no Brasil tem como fundamentos:
I - o reconhecimento da escala mundial da rede;
II - os direitos humanos e o exercício da cidadania em meios digitais;
III - a pluralidade e a diversidade;
IV - a abertura e a colaboração; e
V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 99
pretes desses bens. Essa forma de enfrentar o problema re etiu -se em respostas
legislativas de cada vez mais controle e censura das atividades dos usuários na
internet, em prejuízo do acesso à informação e ao conhecimento, além de direi-
tos fundamentais, como liberdade de expressão e privacidade.
A tentativa de utilização dos mesmos mecanismos de proteção autoral po-
sitivados no século XIX para um ambiente de amplo acesso e colaborativo não
é uma adequação e ciente das respostas legislativas às necessidades sociais. As
empresas relacionadas à indústria do entretenimento ainda tentam adequar o seu
consumidor às suas necessidades de exploração. Enquanto o mais e ciente a ser
feito é investir em modelos inovadores de exploração cultural adequados à ins-
tantaneidade, imediatismo e aproximação dos consumidores com os produtores.
Sobre o ponto de vista de resposta e ciente aos desa os da criação intelec-
tual na internet, o projeto brasileiro do Marco Civil da Internet é reconhecido
internacionalmente como uma resposta contrária as respostas de  ltragem e
censura da internet:
Au contraire le projet brésilien prend le contre -pied absolu de tout ce
qui a été réalisé jusqu’ici et considere clairement l’accès à Internet comme un
droit civique fondamental, essentiel pour l’expression de la citoyenneté, la
liberté d’expression et l’accès à l’information.54
O ambiente digital contribui de formas impressionantes para amplitude
do debate político a para a liberdade de expressão e comunicação, como  cou
demonstrada em situações como a “Primavera Árabe” e projetos de consulta
pública colaborativa como o Marco Civil da Internet no Brasil, a reforma cons-
titucional Islandesa,55 que contou com contribuições via Twitter e Facebook
e a digitalização da Biblioteca Nacional Finlandesa,56 que contou com uma
plataforma colaborativa online em forma de jogo, para que os cidadãos contri-
buíssem nas correções da digitalização e preservação do patrimônio histórico e
cultural do país.
54 Reportagem do Internet sans Frontiers disponível em:
-un -cadre -de -loi -exemplaire_a154.html>. Acessado em 11 de setembro de 2012.
55 Conselho Constitucional Islandês: . Acessado em 10 de setembro
de 2012.
56 “Digitalkootis a joint project run by the National Library of Finland and Microtask. Our goal is to index
the library’s enormous archives so that they are searchable on the Internet.  is will enable everyone to easily
access our cultural heritage. You can help us by playing games. Playing games in Digitalkoot  xes mistakes in
our index of old Finnish newspapers.  is greatly increases the accuracy of text -based searches of the newspaper
archives /en/splash>. Acessado em 10 de setembro de 2012.
100 REVISTA DO PROGRAMA DE DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
Ao comparar diferentes reações às transformações que a internet trouxe à pro-
dução cultural e ao consumo desses bens, esperamos que essas lições sirvam para
compreender quais alternativas de viabilização de uma tutela dos direitos autorais
frente às novas tecnologias realmente compreendem as possibilidades de criação
que a internet proporciona e quais, como ocorre na França, pecam ao aplicar à rede
restrições que não apenas não alcançam os objetivos pretendidos como também
inviabilizam uma série de novos modelos de produção e difusão do conhecimento.
No encontro entre os caminhos percorridos pela França e pelo Brasil es-
peramos que lições possam ser tiradas e que dos erros e dos acertos possam ser
estimuladas soluções legislativas internacionais.
Bibliografia
1. Obras
BLUMANN, Claude e DUBOUIS, Louis. Droit Institutionnel de l’Union euro-
péenne. 3a ed. Paris: Litec, 2007.
JACQUÉ, Jean Paul. Droit Institutionnel de l’Union Européenne. 4 a ed. Paris:
Éditions Dalloz, 2006.
ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO DA FUNDAÇÃO GE-
TÚLIO VARGAS/CTS — Centro de Tecnologia e Sociedade. Direitos autorais
em reforma: Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2011. Disponível em:
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/8789/CTS%20%20
Direitos%20Autorais%20em%20Reforma.pdf?sequence=1>.
2. Artigos
GONÇALVES, Nuno. A transposição para a ordem jurídica interna portuguesa
da directiva sobre o direito de autor na sociedade da informação. In: Direito da
Sociedade da Informação. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, v. Vi. p. 249 — 256.
VICENTE, Dário Moura. Lei Aplicável à responsabilidade pela utilização ilíci-
ta de obras disponíveis em redes digitais. In: Direito da Sociedade da Informação.
Coimbra: Coimbra Editora, 2002, v. III. p.169 — 191.
A REGULAMENTAÇÃO DA CRIAÇÃO INTELECTUAL NA INTERNET 101
3. Sites
A2K Brasil:
Billboard: d.biz>
Câmara dos Deputados: .br>
CNIL:
Conselho Constitucional Francês: -constitutionnel.fr>
Corte de Justiça da União Europeia: .curia.europa.eu>
Cultura Digital:
Cultura Livre:
El País: .elpais.com>
Hadopi:
Idec:
Legifrance: .fr>
La Quadrature du Net: .laquadrature.net>
Le Monde:
Liberation:
Ministério da Cultura: v.br>
Numérama:
Observatório Brasileiro de Políticas Digitais: .observatoriodaInternet.br>
OCDE:
Parlamento Europeu: .europarl.europa.eu>
Internet sans Frontiers: .Internetsansfrontieres.com/Bresil -un-
-cadre -de -loi -exemplaire_a154.html>
4. Jurisprudência
CJUE, 14 de abril de 2011, C -70/10,SABAM/Scarlet (Scarlet Extended SA c.
Société belge des auteurs compositeurs et éditeurs, int. Belgian Entertainment
Association Video ASBL — BEA Video, Belgian Entertainment Association
Music ASBL — BEA Music, Internet Service Provider Association ASBL—
ISPA).
CJUE, 18 de julho de 2007, C -275/06, Promusicae, (Productores de Música de
España c. Telefónica de España SAU).

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