O percurso de construção do espaço social europeu

AuthorSalvador Franco de Lima Laurino
ProfessionDesembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região, em São Paulo. Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especializou-se no Instituto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Pages44-56

Page 44

Conquanto haja algum exagero em acusar os "pais fundadores" da União Europeia de "frigidez social",110 é inegável que o objetivo que os movia era a formação de um grande mercado comum, fundado sobre os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, em que a dimensão social era secundária, subordinada à capacidade espontânea do mercado em promover a melhoria das condições sociais.111

A aproximação das legislações sociais dos Estados-membros teria um caráter instrumental, destinado a assegurar condições de igualdade entre as empresas para favorecer a realização do mercado comum. Por essa lógica, o princípio da livre circulação de trabalhadores resulta do princípio geral da liberdade de estabelecimento; as regras sobre formação profissional ligam-se à competitividade; o princípio da igualdade de remuneração entre homens e mulheres promove o princípio fundamental da livre concorrência ao impedir situações de dumping social que se refletem nos preços dos produtos.112

Apesar da prioridade da economia, uma política social autônoma impunha-se para o êxito do projeto de integração. Primeiro porque a plenitude do mercado comum implica harmonização social, já que a efetiva mobilidade de trabalhadores exige um padrão mínimo de garantias em termos de proteção social e condições de trabalho. Segundo, porque o projeto de integração não poderia prescindir da adesão dos trabalhadores, o que exigia a afirmação de uma clara dimensão social. Terceiro,

Page 45

porque a existência de um modelo social, em passo igual com a democracia política e a economia de mercado, é elemento que integra a própria identidade europeia.113

Diversos obstáculos dificultaram a evolução do direito europeu em matéria social. De um lado, as profundas diferenças dos direitos nacionais em matéria de tutela jurídica do trabalho e de segurança social, que travaram a harmonização de legislações perseguida pelo direito comunitário.114 De outro lado, os custos associados à criação de regras sociais no plano comunitário, que forjaram uma força econômica contrária à aprovação de normas destinadas à harmonização das legislações nacionais em matéria social.115 Além disso, a exigência de unanimidade dos Estados-membros para aprovação de instrumentos normativos em um campo

Page 46

tão sensível tornava particularmente difícil a obtenção de consenso para a criação de regras sociais.116

O clima de forte tensão social no fim dos anos 1960 reforçou a importância da dimensão social no projeto de integração. Em 1974, foi aprovado o primeiro programa na matéria.117 Além de enfatizar a interdependência entre ação econômica e ação social, explicitou que a expansão econômica não é um fim em si mesmo, mas algo que deve se converter em melhoria da qualidade de vida. O programa convergia para três grandes objetivos: i) a realização do "pleno e melhor emprego"; ii) a melhoria das condições de vida e de trabalho; iii) a participação dos trabalhadores na vida da empresa e a dos atores sociais nas decisões econômicas e sociais da Comunidade. As diretivas foram o principal instrumento para a consecução dessas metas em um dos mais fecundos períodos da política social comunitária, tanto que ainda hoje elas representam uma parcela importante do direito social da União Europeia.118

O impulso decisivo para a alteração dos objetivos originais dos tratados fundadores, com a atribuição de um relevo primário à dimensão social, elevada ao mesmo patamar das liberdades econômicas, ocorreu com a aprovação de quatro instrumentos fundamentais: i) o Ato Único Europeu (1986); ii) a Carta Comunitária para os Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (1989); iii) o Tratado de Maastricht (1992) e iv) o Tratado de Amsterdam (1997).119

A política social comunitária dos anos 1980 foi marcada pela difícil situação econômica decorrente do segundo choque petrolífero, das sucessivas ondas de reestruturação

Page 47

produtiva e do enfraquecimento das forças sindicais. Esse cenário favoreceu a ofensiva político-cultural do neoliberalismo, que atribuía à atuação sindical e aos excessos das legislações sociais a perda da competividade da economia europeia. Como remédio, propunha-se a introdução de formas difusas de desregulação e de flexibilidade nos sistemas nacionais de direito do trabalho e no mercado europeu.120

Apesar da oposição neoliberal à regulação social em nível comunitário, considerada como potencial agravante dos males europeus, a harmonização impunha-se pela adesão à Comunidade de países como a Grécia, em 1980, Portugal e Espanha, em 1986, caracterizados por condições de trabalho e de remuneração inferiores às dos antigos membros, bem como por taxas de desemprego mais elevadas.121 Outro estímulo para a mudança assentava na previsão de que o futuro da Europa dependia da aceleração no processo de integração, em ordem a transformar o mercado comum em uma verdadeira união econômica e monetária.122

Seguiu-se o Ato Único Europeu, relevante no campo social por duas razões. Primeiro, porque implantou o diálogo social ao nível europeu, reconhecendo o papel dos parceiros sociais e abrindo a possibilidade de celebração de convenções coletivas de nível comunitário. Segundo, porque diminuiu o elenco de matérias de ordem social em que vigorava o princípio da unanimidade no Conselho, o que facilitou a aprovação de instrumentos normativos envolvendo aspectos sociais do trabalho. Além disso, revigorou os propósitos comunitários em matéria social, que

Page 48

se traduziram no combate ao desemprego e na proposta de elaboração de uma Carta Social.123

O passo seguinte veio com a Carta Comunitária para dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, declaração solene da vontade política de realizar um conjunto de objetivos sociais. O propósito foi o de formar um "núcleo social" para os trabalhadores europeus, destinado a impedir a pressão para o rebaixamento das condições de trabalho, o dumping social impelido pelos imperativos da competitividade internacional e pelas tensões internas entre os países fortes e fracos da Comunidade.124 Foi o primeiro texto normativo autônomo em matéria social no plano comunitário, em que pese não ter sido subscrito por todos os Estados-membros e, por isso, não ter adquirido caráter vinculativo.125

O Tratado de Maastricht é o terceiro momento no percurso de valorização da dimensão social da União Europeia. O Acordo de Política Social, aprovado em Protocolo Anexo ao Tratado, em virtude da oposição do Reino Unido, assentou as bases para o surgimento de uma legislação comunitária abrangente em matéria social.126 Primeiro, porque ampliou os objetivos comunitários na esfera social, por meio de uma competência concorrente com os Estados-membros. Em segundo lugar, alargou o elenco de matérias que poderia ser objeto de intervenção comunitária por meio de maioria qualificada, alcançando as "condições de trabalho". Até então, a regra era a unanimidade, excluídas as questões ligadas ao "ambiente de trabalho". A inclusão das "condições de trabalho" entre as matérias que poderiam ser objeto de deliberação por maioria permitiu abranger a generalidade do tratamento normativo das relações de trabalho, visto que a locução já era interpretada de maneira ampla pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Por fim, acentuou o papel da negociação coletiva ao nível europeu como método para a convergência em matéria social.127

Page 49

O último passo na trajetória de afirmação da dimensão social do projeto europeu é o Tratado de Amsterdam. Sobre consolidar a proteção dos direitos fundamentais como eixo de atuação da União Europeia, incorporou, após a superação da reserva inicial do Reino Unido, as disposições do Acordo de Política Social contido no Protocolo Anexo ao Tratado de Maastricht.128 Outra inovação veio com a inserção de um novo título sobre emprego, que, posicionado significativamente após o título relativo à "política econômica e monetária", atribuiu dimensão "constitucional" à matéria.129

Ao cabo desse percurso, chegou-se ao expresso reconhecimento em uma fonte primária do direito comunitário da relevância dos direitos sociais fundamentais para a União Europeia, conferindo força vinculativa aos princípios sociais. Definiram-se os objetivos de política social da União — a promoção do emprego, a melhoria as condições de trabalho e da proteção social, o diálogo entre os parceiros sociais e a diminuição das exclusões sociais —, com a consequente ampliação do campo de atuação comunitária em matéria social.130

Atualmente, as principais fontes formais do direito comunitário do trabalho são o Tratado da União Europeia, o Tratado do Funcionamento da União Europeia, a Carta dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, as diretivas e os regulamentos que versem matéria social, a jurisprudência do Tribunal de Justiça e outros atos comunitários atípicos, em

Page 50

que merece destaque o Livro Verde Modernizar o direito do trabalho para enfrentar os desafios do século XXI,131 publicado pela Comissão Europeia em 22 de novembro de 2006 com a finalidade de lançar o debate sobre o futuro dos sistemas de relação de trabalho e segurança social na Europa.132

O processo de integração social europeu foi mais intenso na política de emprego e em alguns âmbitos de regulação social, com pouca ou nenhuma repercussão no campo do bem-estar social e das relações coletivas.133 O fundamental das áreas sociais como os salários, o direito sindical e o direito de greve permanecem na esfera de competência exclusiva dos Estados-membros.134 Além das dificuldades

Page 51

que decorrem da heterogeneidade dos modelos nacionais de bem-estar, esse quadro exprime uma escolha pela soberania social dos Estados-membros, prestigiando uma política de desregulamentação que defende a redução dos custos sociais como principal fator de competitividade, numa ótica neoliberal pela qual um direito do trabalho europeu seria algo inconveniente.135

...

To continue reading

Request your trial

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT