A Diretiva n. 96/71: a disciplina comunitária do destacamento de trabalhadores

AuthorSalvador Franco de Lima Laurino
ProfessionDesembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região, em São Paulo. Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especializou-se no Instituto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Pages61-68

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Com a finalidade de disciplinar o destacamento de trabalhadores no âmbito de uma prestação transnacional de serviços, o Conselho da União Europeia e o Parlamento Europeu editaram a Diretiva n. 96/71, de 16 de dezembro de 1996. Para garantir condições justas de concorrência e assegurar um padrão adequado de proteção aos trabalhadores em regime de destacamento, a norma define um conjunto de condições de trabalho que o prestador de serviços deve respeitar durante o período de destacamento no Estado de acolhimento.164

Argumenta-se que a Diretiva n. 96/71 não é uma genuína norma comunitária social. Primeiro, porque seu fundamento formal não reside em disposições de política social, mas em preceitos do Tratado de Roma que autorizavam a adoção de diretivas por maioria qualificada para facilitar as atividades de trabalhadores autônomos e assegurar a liberdade de prestação de serviços. Segundo, porque seu escopo primordial não é a proteção dos trabalhadores destacados, tanto que ela não consagra um princípio geral de igualdade de tratamento com os trabalhadores do Estado de acolhimento.165

Apesar do aparente caráter social, a Diretiva n. 96/71 apresenta substanciais diferenças em relação às autênticas diretivas sociais, seja em função de seu objeto, que é a solução de um conflito de leis, seja por sua finalidade predominantemente econômica, destinada a evitar distorções na concorrência.166

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Como explica Marie-Ange Moreau, "a Diretiva é mais, no seu espírito e no seu fundamento, uma diretiva econômica do que uma diretiva social, mesmo que um dos seus objetivos seja o de proteger os trabalhadores destacados, fazendo-os beneficiar, quando da mobilidade por conta do seu empregador, das disposições essenciais do Direito do Trabalho do país onde a prestação de serviços é executada, quando as condições lhes são favoráveis".167

Tanto a finalidade da Diretiva é assegurar a liberdade empresarial de prestação de serviços, sem obstáculos ou distorções na concorrência, que um Estado-membro, mesmo invocando o princípio da maior proteção, não pode afastar a regra da Diretiva que impõe a sua exclusão nas deslocações inferiores a oito dias de duração, salvo trabalhos de construção civil, para ampliar o nível de proteção social do trabalhador destacado (art. 3o, n. 2).168

Qualquer que seja a finalidade da Diretiva n. 96/71, ela deve ser louvada como ato normativo que contrariou o espírito de flexibilização predominante em seu tempo.169 Mesmo que a proteção do trabalhador não seja um fim em si, mas meio para evitar distorções na concorrência, a harmonização por ela visada impede que o destacamento exerça pressão para reduzir salários no Estado de acolhimento, o que diminui o risco do dumping social e todo o cortejo de efeitos negativos que disso decorre para a liberdade de prestação de serviços e para a proteção social.170

10.1. Âmbito subjetivo e objetivo de aplicação da Diretiva n 96/71

No aspecto subjetivo, a Diretiva aplica-se às empresas estabelecidas num Estado--membro que, no âmbito de uma prestação transnacional de serviços, destaquem trabalhadores para o território de outro Estado-membro (art. 1o, n. 1).171 A norma obriga mesmo quando o prestador de serviços não esteja estabelecido na União (art. 1o,

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n. 4), o que impede que empresas estrangeiras tenham tratamento mais favorável do que as empresas europeias.172

Por outro lado, a Diretiva aplica-se aos "trabalhadores subordinados" que "por um período limitado trabalhem no território de um Estado-membro diferente do Estado onde habitualmente exercem a sua atividade" (art. 2o, n. 1). A norma não fixa o conceito de "trabalhador subordinado", remetendo a qualificação para a lei do Estado-membro em cujo território ele se encontrar destacado (art. 2o, n. 2). O critério é falho porque permite aos Estados-membros delimitar o âmbito subjetivo de aplicação da norma. Para além de colocar em risco o propósito de harmonização das legislações nacionais, pode levar a resultados curiosos se o trabalhador for considerado subordinado no Estado de acolhimento e receber qualificação diferente no Estado de origem.173

No aspecto objetivo, a prestação de serviços pelo empregador pode ocorrer em três situações: i) quando é celebrado um contrato de prestação de serviços entre duas empresas — a do Estado de origem e a do Estado de acolhimento; ii) quando o trabalhador é destacado para um estabelecimento ou uma empresa do grupo a que pertence o empregador em outro Estado-membro, ou iii) na hipótese de trabalho temporário entre uma empresa de trabalho temporário e um utilizador de outro Estado-membro (art. 1o, n. 3).

A duração e a natureza dos trabalhos a que o empregador se obrigou são relevantes na aplicação da Diretiva. Ao destacamento de trabalhadores no âmbito de um fornecimento de bens, com vista à execução de trabalhos de montagem ou instalação desses bens, cuja duração não exceda oito dias, não se aplicam as regras da Diretiva que se ocupam do salário mínimo e duração mínima de férias (art. 3o, n. 2).

Os Estados-membros têm afaculdade de dispensar a aplicação do salário mínimo se a duração do destacamento não exceder um mês (art. 3o, n. 3 e 4). Também quando os serviços a efetuar forem "de reduzido volume", conceito indeterminado e cuja definição é enviada para o direito interno, o país de acolhimento pode dispensar a aplicação do salário mínimo e das férias (art. 3o, n. 5).

Daí existirem situações em que, apesar da prestação temporária de serviços no território de outro Estado-membro, não se caracteriza o regime de destacamento. É, por exemplo, a hipótese do empregado de agência de turismo enviado a uma estância turística para receber os clientes da agência; o motorista encarregado de entregar bens ao cliente domiciliado em outro Estado-membro; o jornalista que faz a cobertura de um evento esportivo em território de outro Estado-membro.174

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A exclusão dessas situações do âmbito de aplicação da Diretiva explica-se justamente em função da "existência de uma hierarquia de objetivos da diretiva, que faz primar o objetivo econômico da regulamentação da concorrência das empresas sobre a proteção do trabalhador destacado".175

10.2. O regime jurídico instituído pela Diretiva n 96/71

As matérias em que se aplica o direito do Estado de acolhimento — quando mais favoráveis do que a lei do Estado de origem (art. 3o, n. 7) — foram selecionadas em atenção à natureza temporária do destacamento de trabalhadores e com base em dois critérios: i) a importância no contexto das relações de trabalho e ii) a aplicação geral e obrigatória no lugar da prestação dos serviços.176

Essas matérias correspondem aos seguintes direitos, contidos em leis ou normas administrativas do Estado de acolhimento, bem como em convenções coletivas ou decisões arbitrais declaradas de aplicação geral: a) períodos máximos de trabalho e períodos mínimos de descanso; b) duração mínima das férias anuais remuneradas; c) salário mínimo, incluindo as bonificações relativas às horas extraordinárias, sem repercussão nos regimes complementares voluntários de reforma; d)...

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